PEC-51: revolução na arquitetura institucional da segurança pública
Por Luiz Eduardo Soares
O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) apresentou ano passado a PEC-51, cuja finalidade é transformar a
arquitetura institucional da
segurança pública,
um legado da ditadura que permaneceu intocado nos 25 anos de vigência
da Constituição cidadã, impedindo a democratização da área e sua
modernização.
As propostas chave da PEC-51 são as seguintes: (1) Desmilitarização:
as PMs deixam de existir como tais, porque perdem o caráter militar,
dado pelo vínculo orgânico com o Exército (enquanto força reserva) e
pelo espelhamento organizacional. (2) Toda
instituição policial passa a ordenar-se em carreira única. Hoje, na PM, há duas polícias:
oficiais e praças. Na polícia civil, delegados e não-delegados. Como esperar respeito mútuo,
compromisso com a equidade e coesão interna desse modo? (3) Toda polícia deve realizar o ciclo completo do
trabalho policial
(preventivo, ostensivo, investigativo). Sepulta-se, assim, a jabuticaba
institucional: a divisão do ciclo do trabalho policial entre militares e
civis. Por obstar a eficiência e minar a cooperação, sua permanência é
contestada por 70% dos profissionais da segurança em todo o país,
conforme pesquisa que realizei com Silvia Ramos e Marcos Rolim, em 2010,
com apoio do Ministério da Justiça e do PNUD, na qual ouvimos 64.120
policiais e demais profissionais da segurança pública (cf. “O que pensam
os profissionais da segurança no Brasil?” Relatório disponível no site
do MJ). (4) A decisão
sobre
o formato das polícias operando nos estados (e nos municípios) cabe aos
Estados. O Brasil é diverso e o federalismo deve ser observado. O
Amazonas não requer o mesmo
modelo policial adequado a
São Paulo,
por exemplo. Uma camisa-de-força nacional choca-se com as diferenças
entre as regiões. (5) A escolha dos Estados restringe-se ao repertório
estabelecido na Constituição –pela PEC–, o qual se define a partir de
dois critérios e suas combinações: territorial e criminal, isto é, as
polícias se organizarão segundo tipos criminais e/ou circunscrições
espaciais. Por exemplo: um estado poderia criar polícias (sempre de
ciclo completo) municipais nos maiores municípios, as quais focalizariam
os crimes de pequeno potencial ofensivo (previstos na Lei 9.099); uma
polícia estadual dedicada a prevenir e investigar a criminalidade
correspondente aos demais tipos penais, salvo onde não houvesse polícia
municipal; e uma polícia estadual destinada a trabalhar exclusivamente
contra o crime organizado. Há muitas outras possibilidades autorizadas
pela PEC, evidentemente, porque são vários os formatos que derivam da
combinação dos critérios referidos. (6) A depender das decisões
estaduais, os municípios poderão, portanto, assumir novas e amplas
responsabilidades na segurança pública. A própria municipalização
integral poder-se-ia dar, no estado que assim decidisse. O artigo 144 da
Constituição, atualmente vigente, é omisso em relação ao Município,
suscitando um desenho que contrasta com o que ocorre em todas as outras
políticas sociais. Na educação, na saúde e na assistência social, o
município tem se tornado agente de grande importância, articulado a
sistemas integrados,
os quais envolvem as distintas esferas, distribuindo responsabilidades
de modo complementar. O artigo 144, hoje, autoriza a criação de guarda
municipal, entendendo-a como corpo de vigias dos “próprios municipais”,
não como ator da segurança pública. As guardas civis têm se multiplicado
no país por iniciativa
ad hoc de prefeitos, atendendo à demanda
popular, mas sua constitucionalidade é discutível e, sobretudo, não
seguem uma política nacional sistêmica e integrada, sob diretrizes
claras. O resultado é que acabam se convertendo em pequenas PMs em
desvio de função, repetindo vícios da matriz copiada. Perde-se, assim,
uma oportunidade histórica de inventar instituições policiais de novo
tipo, antecipando o futuro e o gestando, em vez de reproduzir equívocos
do passado. (7) As responsabilidades da União são expandidas, em várias
áreas, sobretudo na uniformização das categorias que organizam as
informações e na educação, assumindo a atribuição de supervisionar e
regulamentar a formação policial, respeitando diferenças institucionais,
regionais e de especialidades, mas garantindo uma base comum e afinada
com as finalidades afirmadas na Constituição. Hoje, a formação policial é
uma verdadeira babel de conteúdos, métodos e graus de densidade. O
policial contratado pela PM do Rio de Janeiro para atuar nas UPPs é
treinado em um mês, como se a tarefa não fosse extraordinariamente
complexa e não envolvesse elevada responsabilidade. A tortura e o
assassinato de Amarildo, na UPP da Rocinha, não foram fruto da falta de
preparo, mas do excesso de preparo para a brutalidade letal e o mais vil
desrespeito aos direitos elementares e à dignidade humana. A tradição
corporativa, autorizada por fatia da sociedade e pelas autoridades,
impõe-se ante a ausência de uma educação minimamente comprometida com a
legalidade e os valores republicanos. De que serve punir indivíduos se o
padrão de funcionamento rotineiro é reproduzido desde a formação, ou no
vácuo produzido por sua ausência? (8) A PEC propõe avanços também no
controle externo e na participação da sociedade, o que é decisivo para
alterar o padrão de relacionamento das instituições policiais com as
populações mais vulneráveis, atualmente marcado pela hostilidade, a qual
reproduz desigualdades. Assinale-se que a brutalidade policial letal
atingiu, em nosso país, patamares inqualificáveis. Para dar um exemplo,
no estado do Rio, entre 2003 e 2012, 9.231 pessoas foram mortas em ações
policiais. (9) Os direitos trabalhistas dos profissionais da segurança
serão plenamente respeitados durante as mudanças. A intenção é que todos
os policiais sejam mais valorizados pelos governos, por suas
instituições e pela sociedade. (10) A transição prevista será prudente,
metódica, gradual e rigorosamente planejada, assim como transparente,
envolvendo a participação da sociedade.
Por que a PEC-51 me parece decisiva? Por que considero indispensável e
urgente a desmilitarização e a mudança do modelo policial? As respostas
se apoiam na seguinte tese: o crescimento vertiginoso da população
penitenciária no Brasil, a
partir
de 2002 e 2003, seu perfil social e de cor tão marcado, assim como a
perversa seleção dos crimes privilegiados pelo foco repressivo,
devem-se, prioritariamente, à arquitetura institucional da segurança
pública, em especial à forma de organização das polícias, que dividem
entre si o ciclo de trabalho, e ao caráter militar da polícia ostensiva.
Devem-se também às políticas de segurança adotadas e não seria
possível, no modo em que transcorre, se não vigorasse a desastrosa lei
de drogas. Observe-se que a arquitetura institucional inscreve-se no
campo mais abrangente da justiça
criminal,
o que, por sua vez, significa que o funcionamento das polícias,
estruturadas nos termos ditados pelo modelo constitucionalmente
estipulado, produz resultados na dupla interação: com as políticas
criminais e com a linha de montagem que conecta polícia civil,
Ministério Público, Justiça e sistema penitenciário. Pretendo demonstrar
que a falência do sistema investigativo e a inépcia preventiva –entre
cujos efeitos incluem-se a explosão de encarceramentos e seu viés
racista e classista– são também os principais responsáveis pela
insegurança, em suas duas manifestações mais dramáticas, a explosão de
homicídios dolosos e da brutalidade policial letal.
Há pressupostos e implicações teóricas em minha hipótese que devem
ser explicitados, assim como uma interlocução subjacente com a tese
popularizada por Loic Wacquant, em sua influente obra,
As Prisões da Miséria
(Jorge Zahar Editora). O autor sugere conexões funcionais entre a
adoção do receituário neoliberal nos Estados Unidos e o aumento
dramático das taxas de encarceramento, sobretudo de pobres e negros. O
neoliberalismo, ao promover o crescimento do desemprego, o esvaziamento
de
políticas sociais e
a desmontagem de garantias individuais, exigiria a criminalização da
pobreza para aplacar as demandas populares e evitar a eventual tradução
política da exclusão em protagonismo crítico ou insurgente. Se o
exército de reserva da força de trabalho não é mais necessário, dadas as
peculiaridades do sistema econômico globalizado que transfere a
exploração do trabalho para países dependentes, ou apresenta riscos de
converter-se em fonte de instabilidade política, torna-se conveniente
canalizar contingentes numeros dos descartáveis para o sistema
penitenciário. Não por acaso, os EUA viriam a produzir a maior população
penitenciária do mundo. Certo ou errado para o caso norte-americano, o
diagnóstico não se aplica ao Brasil. Entre nós, a epidemia do
encarceramento coincide com os governos do PT, que poderiam merecer todo
tipo de crítica, menos as de serem neoliberais, promotores de
desemprego e do desmonte de políticas e garantias sociais. Pelo
contrário, não resta dúvida quanto às virtudes sociais dos mandatos do
presidente Lula, durante os quais houve redução das desigualdades e
ampliação do emprego e da renda. Contudo, nunca antes na história desse
país prendeu-se tanto. Atribuo a expanção do encarceramento à combinação
entre as estruturas organizacionais das polícias, a adoção de políticas
de segurança que privilegiaram determinados focos seletivos e a
vigência, seguida da potencialização discricionária da Lei de drogas.
Tudo isso em um contexto de crescimento econômico e dinamismo social que
intensifica as cobranças por elevação do rendimento de todas as
instituições. Para demonstrar minha tese, impõe-se um percurso
argumentativo.
I. Voracidade encarceradora enviesada e os circuitos da violência letal
Entre 1980 a 2010, 1 milhão, 98 mil e 675 brasileiros foram
assassinados. O país convive com cerca de 50 mil homicídios dolosos por
ano. A maioria das vítimas são jovens pobres, do sexo masculino,
sobretudo negros. Desse volume aterrador, apenas 8%, em média, são
investigados com sucesso, segundo o
Mapa da Violência, do
professor Waiselfisz, publicado em 2012. Mas não nos precipitemos a daí
deduzir que o Brasil seja o país da impunidade, como o populismo penal
conservador e a esquerda punitiva costumam alardear. Pelo contrário,
temos a quarta população carcerária do mundo e, provavelmente, a taxa de
crescimento mais veloz. Ou seja, além de não evitar as mortes violentas
intencionais e de não as investigar, o Estado brasileiro prende muito e
mal. As prioridades estão trocadas. A vida não é valorizada e se abusa
do encarceramento. A privação de liberdade, este atestado de falência
civilizatória, para a qual ainda não dispomos de alternativa hábil,
deveria ser o último recurso,
exclusivamente
para casos violentos, crimes contra a pessoa, quando o agressor
representasse riscos reais para a sociedade. Hoje, temos 550 mil presos.
Entre os presos, apenas cerca de 12% cumprem pena por crimes letais.
40% são provisórios. Dois terços dessa população, aproximadamente 367
mil, foram presos sob acusação de tráfico de drogas ou crimes contra o
patrimônio. Fica patente que os crimes contra a vida, assim como as
armas, não constituem prioridade. Os focos são outros: patrimônio e
drogas.
II. Estruturas organizacionais e práticas seletivas
As PMs são definidas como força reserva do Exército e submetidas a um
modelo organizacional concebido à sua imagem e semelhança, fortemente
verticalizado e rígido. A boa forma de uma organização é aquela que
melhor serve ao cumprimento de suas funções. As características
organizacionais do Exército atendem à sua missão constitucional, porque
tornam possível o “pronto emprego”, qualidade essencial às ações bélicas
destinadas à defesa nacional.
A missão das polícias no Estado democrático de direito é inteiramente
diferente daquela que cabe ao Exército. O dever das polícias, vale
reiterar, é prover segurança aos cidadãos, garantindo o cumprimento da
Lei, ou seja, protegendo seus direitos e liberdades contra eventuais
transgressões que os violem. O funcionamento usual das instituições
policiais com presença uniformizada e ostensiva nas ruas, cujos
propósitos são sobretudo preventivos, requer, dada a variedade, a
complexidade e o dinamismo dos problemas a superar, os seguintes
atributos: descentralização; valorização do trabalho na ponta;
flexibilidade no processo decisório nos limites da legalidade, do
respeito aos direitos humanos e dos princípios internacionalmente
concertados que regem o uso comedido da força; plasticidade adaptativa
às especificidades locais; capacidade de interlocução, liderança,
mediação e diagnóstico; liberdade para adoção de iniciativas que
mobilizem outros segmentos da corporação e intervenções governamentais
inter-setoriais. Idealmente, o(a) policial na esquina é um(a) gestor(a)
da segurança em escala territorial limitada com amplo acesso à
comunicação intra e extra-institucional, de corte horizontal e
transversal
[1].
A PM é um corpo de servidores públicos pressionado pelo governo, pela
mídia, pela sociedade a trabalhar e produzir resultados, os
quais
deveriam ser entendidos como a provisão da garantia de direitos e a
redução da criminalidade, sobretudo violenta, estabilizando e
universalizando expectativas positivas relativamente à cooperação.
Entretanto, resultados não são compreendidos nesses termos, seja porque
interpõe-se a opacidade dos valores da guerra contra o inimigo interno,
seja porque a máquina policial apenas avança para onde aponta seu nariz,
por assim dizer. Em outras palavras, a máquina, para produzir,
respondendo à pressão externa (crescente quando o país cresce e a
sociedade intensifica cobranças, levando os governos a exigir mais
produtividade de seus aparatos), precisa mover-se, isto é, funcionar, e
só o faz segundo as possibilidades oferecidas por seus mecanismos, os
quais operam em sintonia com o repertório proporcionado pela tradição
corporativa, repassado nas interações cotidianas, nos comandos e no
processo de socialização, o qual incorpora e transcende a formação
técnica.
A máquina funciona determinando às equipes de subalternos nas ruas,
pelos canais hierárquicos do comando, ao longo dos turnos de trabalho,
trajetos de patrulhamento, em cujo âmbito realiza-se a vigilância. A
operacionalização depende da subserviência do funcionário que atua na
ponta, ao qual se exige renúncia à dimensão profissional de seu ofício, à
liberdade de pensar, diagnosticar, avaliar, interagir para conhecer,
planejar, decidir, mobilizar recursos multissetoriais, antecipando-se
aos problemas identificados como prioritários. A inexorável
discricionariedade da função policial será exercida nos limites impostos
pela abdicação do pensamento e do protagonismo profissional. Será
reduzida ao arbítrio, porque descarnada da finalidade superior, que
daria sentido à sua ação. O que restará ao policial militar na ponta, na
rua? O que caberá ao soldado? Varrer a rua com os olhos e a audição,
classificando personagens e biotipos, gestos e linguagens corporais,
figurinos e vocabulários, orientado pelo imperativo de funcionar,
produzir, o que significa, para a PM, prender.
Ad hoc, no varejo
do cotidiano, só resta ao soldado procurar o flagrante, flagrar a
ocorrência, capturar o suspeito. Os grupos sociais mais vulneráveis
serão também, no quadro maior das desigualdades brasileiras e do racismo
estrutural, os mais vulneráveis à escolha dos policiais, porque eles
projetarão preconceitos no exercício de sua vigilância. Nos territórios
vulneráveis, a tendência será atuar como tropa de ocupação e enfrentar
inimigos. Assim se explicam as milhares de execuções extra-judiciais sob
o título cínico de autos-de-resistência, abençoados pelo MP sem
investigação e arquivados com o aval cúmplice da Justiça, ante a omissão
da mídia e de parte da sociedade.
Por fim, o flagrante exige um tipo penal: na ausência da antiga
vadiagem, está à mão a lei de drogas (e não só). Ou seja, pressionar a
PM a funcionar equivale a lhe cobrar resultados, os quais serão
interpretados não como redução da violência ou resolução de problemas,
mas como efetividade de sua prática, ou seja, como produtividade
confundida com prisões, contabilizada em prisões, aquelas mais prováveis
pelo método disponível, o flagrante. O personagem, o biotipo, o
rótulo, o figurino, o território, a fala, a vigilância no varejo das
ruas, a ação randômica em busca do flagra: não é preciso grandes
articulações funcionais entre macro-economia e políticas sociais, a
proporcionar sobrevida ao capitalismo. Basta a máquina funcionar. Ela
não investiga, porque a fratura do ciclo, prevista no modelo, não
permite. Ela está condenada a enxergar o que se vê na deambulação
vigilante, em busca dos personagens previsíveis, que confirmem o
estereótipo e estejam nas ruas, mostrem-se acessíveis. Ela vai á caça do
personagem socialmente vulnerável, que comete determinados tipos de
delito, captáveis pelo radar do policiamento ostensivo.
Claro que a política criminal é decisiva, assim como a política de
segurança, com suas escolhas de fundo, mas é indiscutível que cumprem
papel determinante a militarização e a ruptura do ciclo do trabalho
policial. A divisão do ciclo, no contexto da cultura corporativa
belicista –herdada da ditadura e do autoritarismo onipresente na
história brasileira–, cria uma polícia exclusivamente ostensiva, cuja
natureza militar –fortemente centralizada e hierarquizada– inibe o
pensamento na ponta, obsta a valorização do policial e de sua autonomia
profissional, e mutila a responsabilidade do agente, degradando a
discricionariedade hermenêutica em arbitrariedade subjetiva. A aprovação
da PEC-51 não resolverá todos os problemas. Longe disso. Entretanto,
pelos motivos expostos, constitui condição
sine qua non para que eles comecem a ser enfrentados.
[1] Este parágrafo foi escrito em parceria com Ricardo Balestreri para artigo que publicamos juntos na Folha de São Paulo, em 18 de maio de 2012, sob o título, “A Raiz de nossos problemas de segurança”.