O fato de o ajudante de pedreiro ser visto como “boi” pode ter ajudado a fazer do seu desaparecimento um protesto
Por ELIANE BRUM, para Época
Os conhecidos chamavam Amarildo de “boi”. Porque fazia a proeza de
carregar dois sacos de cimento nas costas, apesar de magro e quase
baixo, em seu pouco mais de 1,70 metro de altura. Porque era também quem
carregava os doentes nas costas, tirando-os de dentro da favela e
vencendo as escadarias da Rocinha. De todas as descrições de Amarildo, é
a do boi a mais marcante, a infinitamente repetida. É como boi que o
enxergavam. Boi, não touro. E esta, talvez, seja parte da tragédia. A
que começou muito antes do derradeiro crime.
Amarildo de Souza, 43 anos, foi levado para a sede da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha, favela da zona sul do Rio de Janeiro, na noite de domingo, 14 de julho. “Para averiguação”, como a polícia costuma dizer quando carrega com ela algum pobre, como se fosse uma justificativa aceitável. Amarildo acabara de voltar de uma pescaria quando quatro policiais o abordaram, supostamente confundindo-o com um traficante, embora testemunhas digam que pelo menos um deles o conhecia muito bem. Nos dias 13 e 14 de julho, a “Operação Paz Armada” – e aqui o nome não é apenas uma ironia, mas também uma violência – colocou 300 policiais na Rocinha e prendeu dezenas de pessoas.
Uma testemunha contou à repórter Elenilce Bottari, de O Globo: “Ele (Amarildo) estava na porta da birosca, já indo para casa, quando os policiais chegaram. O Cara de Macaco (outro apelido curioso, desta vez de um dos policiais da UPP), meteu a mão no bolso dele. Ele reclamou e mostrou os documentos. O policial fingiu que ia checar pelo rádio, mas quase que imediatamente se virou para ele e disse que o Boi tinha que ir com eles. O Cara de Macaco conhecia o Boi e vivia implicando com ele e a família. Esse policial é ruim, gosta de humilhar os pobres daqui”. Amarildo entrou no carro da Polícia Militar vestindo apenas bermuda e chinelos. Sem camisa, o torso de boi estava nu. Desde então, não foi mais visto.
O comandante da UPP, major Edson Santos, disse aos repórteres Marco Antônio Martins e Fábio Brisolla, da Folha de S. Paulo, que Amarildo teria ficado menos de cinco minutos na unidade, o suficiente para ser desfeita a confusão de identidades, e em seguida teria sido liberado. A Rocinha tem 84 câmeras. Naquele domingo, as duas câmeras diante da UPP tiveram problemas. O GPS dos carros de polícia não funcionavam. O que teria acontecido com Amarildo que as câmeras não puderam ver? Que caminhos teria ele percorrido que o GPS não pôde registrar? Ou ele deixou a UPP caminhando e desapareceu depois, como afirma o policial?
Amarildo era ajudante de pedreiro e criava os seis filhos num barraco de um único cômodo, num ponto da favela em que o esgoto serpenteia pelas vielas e tuberculose é doença corriqueira. Não sabia ler, só escrevia o próprio nome. Como conta a repórter Anne Vigna, da Agência Pública, era descendente de escrava, filho de uma empregada doméstica e de um pescador, numa família de 12 crianças. Ganhava R$ 300 numa obra em Copacabana, salário que complementava carregando sacos de cimento nos finais de semana. Estava contente porque tinha conseguido comprar tijolos para alargar sua casa. Ele, que a vida toda construíra a casa dos outros, nas quais tijolos não faltavam. Como o animal cujo nome lhe impingiram, Amarildo também atravessava a vida carregando um peso que não lhe pertencia.
Sim, porque Amarildo era chamado de boi, não touro. Boi de canga é aquele que puxa o arado, um passo penoso depois do outro, um dia seguido de outro dia, as costas suadas debaixo de um sol excessivo. Quem já viu a cena sabe que o mais brutal são os olhos mansos do boi, a resignação de quem só conhece uma sina, a canga que já lhe espremeu a alma. Se Amarildo era ou não boi talvez nunca saberemos, mas o fato de Amarildo ser visto como boi, o que foi citado em quase todos os perfis da imprensa, não deve passar incólume. Não pela sua dimensão poética, mas porque há algo de perturbador no discurso do boi.
O boi não é um animal qualquer. A palavra que o representa marca uma castração. O boi é um vir-a-ser que não será, um interrompido no meio do gesto de tornar-se. Ele poderia ter sido um touro, não fosse o homem ter dado a ele outro destino quando ainda era pouco mais que uma criança, num ritual de sacrifício, mesmo que as técnicas sejam hoje modernas. O boi é aquele que é emasculado para ser ofertado ao serviço ou ao consumo. É emasculado para a servidão – seja como força de trabalho, seja como fornecedor de proteínas. É alienado de si para virar carne, força bruta a serviço de seu dono e algoz. O touro, não. O touro tem a pulsão sexual, o que o faz ser aquele que é. Na literatura, os bois humanos são castrados de esperanças, de possibilidades, de revolta com sua condição servil – de liberdade.
O perigo do boi, no caso de Amarildo, é que o boi parece se transmutar em uma outra palavra, também repetida com insistência nas descrições que dele fizeram: “trabalhador”. Amarildo é o (sub)proletário que ganha meio salário mínimo, condenado a vender o corpo tão barato que nem mesmo consegue alimentar direito a si e à sua família. Mas há um valor simbólico associado a esse trabalhador braçal que carrega duas sacas de cimento nas costas, enquanto outros só conseguiriam carregar uma. Um valor representado pelo boi, essa figura enganosamente bucólica vinda do Brasil colonial, que atravessa os séculos e ganha novos sentidos no capitalismo. Esse valor talvez faça com que seja mais fácil para o Brasil que reclama seu sumiço amá-lo. Amarildo, o boi humano, é o pobre submisso. E parece ser também isso o que torna seu
desaparecimento inaceitável.
E aqui, o parêntese sempre necessário. É inaceitável qualquer pessoa entrar num posto policial e desaparecer, como tem acontecido com milhares em todo o Brasil. É inaceitável Amarildo desaparecer, assim como é uma grande notícia que Amarildo tenha virado notícia. O que sugiro é uma complicação um pouco maior, que talvez nos ajude a avançar, sobre o quanto essa figura de Amarildo, o boi, pode ter ajudado a transformar seu nome num slogan de protesto nas ruas e nas redes sociais. A pergunta que proponho aqui é se o fato de Amarildo ser o trabalhador que carrega dois sacos de cimento nas costas o tornou mais palatável para parte daqueles que denunciam seu sumiço e exigem uma resposta. Isso em nada muda a necessidade imperativa de denunciar e exigir uma resposta, porque o sumiço de Amarildo e de todos os outros que não viraram slogan é desde sempre inaceitável. E inaceitável um a um. Mas pode nos ajudar a compreender a complexidade do momento em que vivemos. E talvez nos ajude a não cair em armadilhas nos dias que virão.
O valor simbólico do boi atravessa o tempo e assinala visões de mundo, ainda que inconscientes, nas diferentes classes sociais. É tão comum como triste quando, ao ser confrontados com alguém identificada como autoridade, o que pode ser simplesmente alguém de uma classe mais privilegiada, os pobres apresentam de imediato sua carteira de trabalho para provar que existem e são pessoas boas. Ou para não serem humilhados ou presos, o que não funcionou no caso de Amarildo, mesmo quando “Cara de Macaco” enfiou a mão no seu bolso para pegar os documentos, conforme conta uma testemunha. É assim que a irmã de Amarildo, Maria Eunice Dias Lacerda, o descreve ao jornalista Fernando Gabeira, em reportagem da Globo News: “Ele não ficava em casa, ele era um tipo de pessoa que ele não descansava. Ele não tinha tempo nem pra comer, nem pra se divertir, o negócio dele era trabalho”. Em um perfil publicado na Folha de S. Paulo, essa mesma irmã enuncia o que poderia ser a contrapartida de ser boi em um pacto não pronunciado, mas persistente: “É duro dizer, mas eu acho que meu irmão está morto. Ele sempre dizia que revidaria se fosse agredido por um policial. Dizia que trabalhador não pode levar tapa na cara e ficar quieto”.
O perigo do boi fica ainda mais explícito em uma declaração de Sérgio Cabral (PMDB), o governador decaído do Rio. Ele afirmou no Twitter: "Nada justifica o desaparecimento de uma pessoa que foi checada pelo próprio comandante da UPP como trabalhador". O que Cabral está dizendo? Se Amarildo não fosse um “trabalhador”, o desaparecimento e a possível morte estariam então não só justificados como legitimados?
De fato, é isso que temos testemunhado e com o que temos compactuado quando não protestamos contra os “suspeitos” executados pela polícia em sucessivas e persistentes invasões nas favelas, como aconteceu em junho na Maré, no mesmo Rio de Janeiro. Ou como acontece há décadas, séculos, em todo o Brasil. Sobre isso, escrevi um outro texto, “Também somos o chumbo das balas” (leia aqui). Nas palavras do governador, se Amarildo não fosse um boi/trabalhador, seu sumiço estaria dentro da normalidade. É essa aberração que tem sido a normalidade no Rio – e no Brasil inteiro.
É por isso que vale a pena se preocupar com o fato de Amarildo ser visto como boi – não como touro. E se Amarildo fosse “suspeito” ou “traficante” ou “bandido” – e não “trabalhador” – como reagiríamos? Teríamos sido capazes de transformar seu sumiço em denúncia e protesto? Ou preferimos ser rebanho, mesmo quando aparentemente nos rebelamos? Pode ser triste, mas necessário, constatar que, em alguns aspectos, uma parcela dos que protestam contra Cabral é mais semelhante do que diferente do governador decaído e da porção assassina de sua polícia. As questões incômodas têm o mérito de nos fazer a avançar e, quem sabe, nos tornar melhores.
Dito isso, a pergunta se impõe: onde está Amarildo?
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