Frankenstein de água
Por Lúcio Flávio Pinto*. 05.05.10 - 13h37
Mal colocou em funcionamento no rio Tocantins, no Pará, a hidrelétrica de Tucuruí, a quarta maior do mundo, em 1984, a Eletronorte já se preparou para repetir a dose, em escala ampliada. Avançando para oeste nos afluentes do Amazonas, arrematou os estudos para a primeira de seis usinas que pretendia construir no Xingu, destinada a ser a terceira maior do planeta.
O modelo era praticamente o mesmo, não só da gigantesca Tucuruí, como de hidrelétricas menores que saíram da prancheta da subsidiária da Eletrobrás: uma barragem de alta queda para segurar grande volume de água no reservatório e acionar turbinas de tal potência que precisam de pelo menos 300 mil litros de água por segundo.
O problema é que os maiores rios amazônicos têm baixa declividade natural. Represados por um elevado paredão de concreto, inundam grandes áreas rio acima. Além disso, a variação da sua vazão entre o máximo do inverno e o mínimo do verão pode ser de mais de 30 vezes.
Um turbilhão de águas na cheia é substituído por um fio d’água na vazante tanto no Tocantins quanto – e ainda mais – no Xingu. Para que as máquinas de energia funcionem regularmente o ano inteiro, pagando seu pesado custo, é preciso estocar muita água. Em Tucuruí, são 50 trilhões de litros de água estocados numa área de mais de três mil quilômetros quadrados. Só assim a usina pode se manter quando a vazão se torna mínima.
A cena da índia pintada para a guerra e com ar feroz brandindo seu facão diante do assustado engenheiro correu mundo e provocou impacto. O mundo primitivo dizia não à civilização pós-moderna**. Sentimentos mal reprimidos de consciência culpada afloraram. O Banco Mundial decidiu não mais financiar grandes barragens na Amazônia. Fechou-se assim a grande porta de financiamento internacional, base de sustentação do “barragismo” no Brasil durante o governo militar, que levantou gigantes de concreto sobre leitos de rios, como Itaipu e Tucuruí**.
A condução do projeto também se tornou descontínua. Depois de ficar sob o controle total da Eletronorte, foi dividido entre a Odebrecht, a Andrade Gutierrez e Eletrobrás. A Chesf, estatal com jurisdição no Nordeste, substituiu a estatal amazônica, que está sem condições financeiras, enquanto as duas empreiteiras privadas acabaram se desinteressando por apresentar o lance vencedor no leilão. O consórcio que arrematou a concessão será incapaz de executar a obra, convicção a que se pode chegar apenas examinando as empresas que o compuseram.
A expectativa de que o outro grupo seria o vencedor, por combinar construtoras experientes e habilitadas com grupos de consumidores intensivos de energia (como a Vale e a CBA), se frustrou por algum incidente de bastidores ainda não reconstituído. A própria marginalia do leilão deve ter crescido tanto que, se chegar a ser revelada, desnudará provavelmente um escândalo de acertos prévios e cartas marcadas, o maior do governo Lula.
A sofreguidão do presidente da República arrematou a sucessão de erros e irregularidades com a decisão de que, se tudo der errado, como está acontecendo, o governo assumirá sozinho o projeto, estatizando-o de vez. As tinturas de privatização são tênues demais para que se acredite nelas.
O BNDES se dispõe a financiar – em condições favoráveis ao tomador do dinheiro – 80% dos 19 bilhões de reais orçados para a obra (pelo menos R$ 30 bilhões, segundo os empreiteiros). Já a Sudam comprometeu isenção de 75% do imposto de renda por dez anos. Outros benefícios já se incorporaram à cesta de favores, com o objetivo de reduzir ao mínimo o risco do empreendedor.**
Com tudo isso, a rentabilidade do negócio dependerá ainda da disposição do governo de ir além se a obra ultrapassar o valor orçado oficialmente. Nele ainda não está incluída a transmissão, e ficam pendentes detalhes técnicos que não podem ser minimizados diante da grandiosidade do projeto.
O projeto de Belo Monte se tornou um monstro, um Frankenstein, depois de tantas mudanças, correções, ajustes e mistificações feitos nos seus 30 anos de história. Começou como uma cópia do modelo de hidrelétricas no Brasil, com ênfase em Tucuruí, apenas com ligeiras correções e adaptações.**
Depois, tentou agradar os ambientalistas atendendo sua principal queixa: a grande inundação provocada pelas barragens. Mas ao cobrir essa falha, como a visão era curta, acabou inviabilizando a obra, por aumentar descontroladamente o seu custo. Hoje, o negócio só pode ir em frente com muito dinheiro público. E quando isso acontece, sem uma diretriz firme, a história começa a feder.
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Por Lúcio Flávio Pinto*. 05.05.10 - 13h37
Mal colocou em funcionamento no rio Tocantins, no Pará, a hidrelétrica de Tucuruí, a quarta maior do mundo, em 1984, a Eletronorte já se preparou para repetir a dose, em escala ampliada. Avançando para oeste nos afluentes do Amazonas, arrematou os estudos para a primeira de seis usinas que pretendia construir no Xingu, destinada a ser a terceira maior do planeta.
O modelo era praticamente o mesmo, não só da gigantesca Tucuruí, como de hidrelétricas menores que saíram da prancheta da subsidiária da Eletrobrás: uma barragem de alta queda para segurar grande volume de água no reservatório e acionar turbinas de tal potência que precisam de pelo menos 300 mil litros de água por segundo.
O problema é que os maiores rios amazônicos têm baixa declividade natural. Represados por um elevado paredão de concreto, inundam grandes áreas rio acima. Além disso, a variação da sua vazão entre o máximo do inverno e o mínimo do verão pode ser de mais de 30 vezes.
Um turbilhão de águas na cheia é substituído por um fio d’água na vazante tanto no Tocantins quanto – e ainda mais – no Xingu. Para que as máquinas de energia funcionem regularmente o ano inteiro, pagando seu pesado custo, é preciso estocar muita água. Em Tucuruí, são 50 trilhões de litros de água estocados numa área de mais de três mil quilômetros quadrados. Só assim a usina pode se manter quando a vazão se torna mínima.
A hidrelétrica do Tocantins começou a ser construída com pouca reação (e conhecimento) da sociedade em 1975, seis anos antes da legislação ambientalista brasileira ter início. Em menos de dez anos já estava em operação. Seu maior problema foi a descontinuidade de recursos financeiros mais do que críticas ou guerra judicial. A Eletronorte achava que podia reeditar a façanha com Belo Monte no Xingu.
Mas o facão da índia Tuíra (foto), passado cinematograficamente no rosto do tecnocrata que tinha o principal papel nesse enredo, o engenheiro José Antônio Muniz Lopes, pôs fim a essa ilusão. Foi em 1989, durante o I Encontro dos Povos Indígenas, em Altamira, que reuniu índios, celebridades e ONGs internacionais.
A cena da índia pintada para a guerra e com ar feroz brandindo seu facão diante do assustado engenheiro correu mundo e provocou impacto. O mundo primitivo dizia não à civilização pós-moderna**. Sentimentos mal reprimidos de consciência culpada afloraram. O Banco Mundial decidiu não mais financiar grandes barragens na Amazônia. Fechou-se assim a grande porta de financiamento internacional, base de sustentação do “barragismo” no Brasil durante o governo militar, que levantou gigantes de concreto sobre leitos de rios, como Itaipu e Tucuruí**.
Belo Monte parecia condenada ao esquecimento. Mas em 2002 ela foi reapresentada com nova moldura: sem as demais barragens rio acima e com seu reservatório reduzido a um terço do tamanho original (de 1.200 para 400 km2), metade dele coincidindo com a área natural de inundação do Xingu à altura de Altamira, a maior cidade do vale.
Era a primeira grande hidrelétrica a fio d’água do Brasil, mesmo projetada para ser a terceira maior do planeta. Foi despojada dos efeitos negativos de Tucuruí, com área de inundação quase oito vezes maior (e 30% menos energia). Mas sem o estoque de água da barragem de Babaquara, que seria construída a montante, alagando 6 mil km2, as 20 gigantescas turbinas da casa de força ficariam paradas, por absoluta falta de água, durante três meses e funcionariam a baixa potência por igual período.
A energia firme (disponível em média) ficaria aquém do nível recomendado, de 50%, podendo bater em pouco mais de 30%. E havia ainda outro problema: o custo da transmissão da energia cresceu tanto que se aproximou do custo da geração, relação inédita nesse tipo de orçamento. A preocupação com a imagem ambiental do projeto, abalada desde 1989, afetou sua viabilidade técnica e econômica, que se tornou tremendamente complexa e temerária.
A construção dos diques para conduzir a água por dois igarapés até a casa de força, num desnível de 90 metros e uma distância de 50 quilômetros, demandará um volume enorme de concreto e uma precisão tal para evitar vazamentos. Iniciativa de risco diante das condições da área na Volta Grande do Xingu, com muita drenagem, rochas e terra. Uma barragem secundária foi concebida para manter a vazão pelo leito natural do rio, impedindo-o de secar. Mas depois foram aduzidas oito turbinas a bulbo, que produzem energia – embora em muito menor quantidade do que as turbinas tipo Francis da casa de força principal – com água corrente, sem reserva e sem precisar de desnível.
A condução do projeto também se tornou descontínua. Depois de ficar sob o controle total da Eletronorte, foi dividido entre a Odebrecht, a Andrade Gutierrez e Eletrobrás. A Chesf, estatal com jurisdição no Nordeste, substituiu a estatal amazônica, que está sem condições financeiras, enquanto as duas empreiteiras privadas acabaram se desinteressando por apresentar o lance vencedor no leilão. O consórcio que arrematou a concessão será incapaz de executar a obra, convicção a que se pode chegar apenas examinando as empresas que o compuseram.
A expectativa de que o outro grupo seria o vencedor, por combinar construtoras experientes e habilitadas com grupos de consumidores intensivos de energia (como a Vale e a CBA), se frustrou por algum incidente de bastidores ainda não reconstituído. A própria marginalia do leilão deve ter crescido tanto que, se chegar a ser revelada, desnudará provavelmente um escândalo de acertos prévios e cartas marcadas, o maior do governo Lula.
A sofreguidão do presidente da República arrematou a sucessão de erros e irregularidades com a decisão de que, se tudo der errado, como está acontecendo, o governo assumirá sozinho o projeto, estatizando-o de vez. As tinturas de privatização são tênues demais para que se acredite nelas.
O BNDES se dispõe a financiar – em condições favoráveis ao tomador do dinheiro – 80% dos 19 bilhões de reais orçados para a obra (pelo menos R$ 30 bilhões, segundo os empreiteiros). Já a Sudam comprometeu isenção de 75% do imposto de renda por dez anos. Outros benefícios já se incorporaram à cesta de favores, com o objetivo de reduzir ao mínimo o risco do empreendedor.**
Com tudo isso, a rentabilidade do negócio dependerá ainda da disposição do governo de ir além se a obra ultrapassar o valor orçado oficialmente. Nele ainda não está incluída a transmissão, e ficam pendentes detalhes técnicos que não podem ser minimizados diante da grandiosidade do projeto.
O projeto de Belo Monte se tornou um monstro, um Frankenstein, depois de tantas mudanças, correções, ajustes e mistificações feitos nos seus 30 anos de história. Começou como uma cópia do modelo de hidrelétricas no Brasil, com ênfase em Tucuruí, apenas com ligeiras correções e adaptações.**
Depois, tentou agradar os ambientalistas atendendo sua principal queixa: a grande inundação provocada pelas barragens. Mas ao cobrir essa falha, como a visão era curta, acabou inviabilizando a obra, por aumentar descontroladamente o seu custo. Hoje, o negócio só pode ir em frente com muito dinheiro público. E quando isso acontece, sem uma diretriz firme, a história começa a feder.
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*Lúcio Flávio Pinto é paraense de Santarém; tem 60 anos e é jornalista há 44. Passou por algumas das principais publicações brasileiras, e hoje é editor do Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que circula em Belém desde 1987. Já recebeu quatro prêmios Esso e dois Fenaj, além do International Press Freedom Award. Tem 15 livros publicados, a maioria sobre a Amazônia.
**Grifos do blog.
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