quarta-feira, 16 de junho de 2010

Guerra dos coronéis, por Lúcio Flávio Pinto

Lendo a entrevista no post abaixo, do jornalisa Palmério Dória, lembrei de brilhantíssimo artigo do jornalista Lúcio Flávio Pinto, no seu Jornal Pessoal (2ª quinzena de nov. de 2009), o qual refere-se ao lançamento de Honoráveis Bandidos na sede do Sindicato dos Bancários no Maranhão, e o qual virou um palco de guerra. Por isso resolvi postá-lo, pois Lúcio Flávio é Lúcio Flávio. Por exemplo, se ele não fala, jamais saberia que Glauber Rocha, o da "câmera na mão e muitas idéias na cabeça" tinha feito uns "bicos" para o nascente coronel maranhense.
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A corrida eleitoral já está nas ruas do Maranhão, antes do que em qualquer outro lugar do Brasil. Pelo jeito, de olho no futuro, as lideranças políticas estão dispostas a recorrer a métodos do passado. Para ganhar de qualquer maneira.

Sempre o último no Brasil na hora de medir a qualidade de vida da população, o Maranhão saiu na frente de todos na corrida para a eleição de 2010. Essa liderança se materializou no dia 4, no auditório do sindicato estadual dos bancários. O palco foi montado para o lançamento do livro Honoráveis Bandidos: um retrato do Brasil na era Sarney, dos jornalistas Palmério Dória e Mylton Severiano, que reconstitui criticamente a biografia do mais destacado político vivo (e de todos os t empos) do Maranhão, o atual do presidente do Senado, José Sarney, do PMDB. Mas o cenário acabou se transformando num campo de batalha entre partidários e adversários do ex-governador.

O que podia se reduzir a um episódio da política provinciana adquiriu dimensão nacional graças à grande repercussão imediata através da internet. As cenas de selvageria e primitivismo acabaram sendo ecoadas pela grande imprensa, não apenas em função de sua importância intrínseca, como fato jornalístico, mas em função dos interesses específicos de cada órgão da mídia nacional. Com maior ou menor ênfase, informações mais completas ou parciais, a cobertura colocou o Maranhão na linha de partida da próxima corrida eleitoral, que agitará o Brasil de Norte a Sul. Não na posição de expectativa, mas já na função de protagonista.

As imagens gravadas durantes os incidentes, desencadeados quando o jornalista paraense Palmério Dória mal começava a ler um texto de apresentação do seu livro, publicado em São Paulo pela Geração Editorial, de outro jornalista (este, paulista), Luiz Fernando Emediato. O episódio não durou mais do que um minuto. Um grupo de 15 (ou 12) pessoas, sobretudo jovens, começou a gritar palavras de ordens, abrir faixas e atirar exemplares de um livreto, “Corrupção - Navalhados Bandidos”, sobre a prisão de alguns membros dos grupos políticos dos ex-governadores Jackson Lago e José Reinaldo Tavares durante a Operação Navalha, desencadeada pela Polícia Federal em 2007. Em seguida atiraram ovos e uma torta contra a platéia e a mesa dos convidados e anfitriões da noitada. Logo foram escorraçados aos empurrões, tapas e cadeiradas. A fuga foi às pressas. O grupo, liderado pela presidente da Federação dos Estudantes do Maranhão, Ana Paula Ribeiro, paradoxalmente aluna do curso de direito, não parecia preparado para reação tão pronta e decidida.

Os organizadores do lançamento do livro, porém, devem ter incluído nas suas providências a eventualidade de um ataque dos defensores de Sarney, duramente criticado no livro, mesmo que esse ato pudesse ter (como teve) efeito justamente contrário ao pretendido: divulgar ainda mais o livro. Os promotores da noite de autógrafos contrataram alguns robustos seguranças, decisivos para isolar os manifestantes e rapidamente retirá-los do recinto. Várias outras pessoas presentes envergavam blusas de cor preta com dizeres promocionais do livro. Sinais mais do que evidentes de que, se não houve um entendimento prévio com os autores e editores da publicação, ela foi aproveitada como instrumento de antecipação da campanha eleitoral no Maranhão.

A antecipação, porém, não pode ser classificada como rigoroso vanguardismo político, muitíssimo pelo contrário. Dos cinco minutos de duração do vídeo, que logo chegou à rede mundial de computadores, se podiam extrair exemplos dos mais atrasados costumes políticos do país - e que estão bem longe de serem exclusividade do Maranhão. O grupo que hostilizou o lançamento não estava no local numa manifestação espontânea, nem seus integrantes eram apenas (ou sobretudo) líderes estudantis. A maioria tem emprego público no Estado, comandado pela filha do senador, Roseana Sarney, ou junto a aliados da família.

Era mais uma evidência de um componente da política estudantil que, não sendo exatamente novo, foi agravado pelo volume de dinheiro que passou a circular - como nunca antes - por esse segmento da formação de lideranças. O lulismo alargou as fontes de financiamento das entidades estudantis, minando (ou mesmo destruindo) seu fundamento ideológico, político ou cultural. Ser líder estudantil se tornou um negócio, às vezes bem rentável (como ser dirigente sindical ou de organizações civis supostamente não-governamentais).

Outro elemento de primitivismo cívico e político é a personificação do poder. Claro que não há causa, por mais nobre e mobilizadora que seja, sem alguém de carne e osso para empunhar a bandeira. O problema é que a personalização cresceu de forma vertiginosa, enquanto o conteúdo da divergência definhou. Sarney é personagem do topo da política maranhense desde 1966, mas nunca, como hoje, foi tão demonizado, mais do que ao ocupar a presidência da república.

Intérpretes (e, certamente, seus parceiros) atribuem essa radicalização à aliança entre o soba maranhense e Lula. O objetivo último da ofensiva contra Sarney seria atingir por tabela (mas de forma incisiva) o presidente popular, que incomoda as elites, em especial o PSDB. Várias delas, que antes conviviam com Sarney ou mesmo o consideravam seu par, agora o anatematizam.

Há fatos sob esse discurso, mas não muitos, nem substanciais. Sem dúvida, há esses inimigos por cálculo, melífluos, que utilizam argumentos éticos e morais para embrulhar seus interesses pessoais. Essa litigância de má-fé, contudo, não define a essência da questão. Talvez por ser interlocutor e conselheiro do presidente da república, com mando no governo do Maranhão, no Senado e em vários outros escaninhos dos três poderes, Sarney se julgou poderoso o suficiente para se exceder e cometer erros primários, como se fosse inatingível ou inimputável.

Um exemplo pequeno, mas de alto significado simbólico, foi o que ele deu através da Fundação José Sarney. A pretexto de ter um lugar e uma instituição para reunir seus documentos presidenciais, ele privatizou um monumento público de São Luís, o Convento das Mercês, de grande valor arquitetônico e histórico, e o transformou numa fonte de receita pessoal, para uso exclusivo e sem controle. O abuso, porém, acabou provocando o interesse e a interferência de órgãos públicos, quando a torrente de transferência de verbas públicas se acentuou.

O resultado é que Sarney precisou encerrar às pressas as ativides da fundação, devolver o prédio público e fazer o que estava ao seu alcance para sepultar o mais rápido possível essa mácula. Ela faz pensar numa situação parecida, quando, em 1971, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, fraudou a data (tornando-a retroativa) da doação dos seus documentos para a biblioteca que seria constituída com seu nome e assim usufruir os benefícios da redução de imposto de renda (quase 500 mil dólares em quatro anos), que já então haviam sido bastante restringidos.

A sucessão de excessos e erros que Sarney cometeu desnudou sua imagem, revelando a truculência dos seus métodos ou a audácia da sua ingerência sobre os negócios públicos - do Maranhão e do país. Expôs suas fraquezas como adversário e suas inconveniências enquanto aliado. Apresentou-se como judas ideal para ser malhado, um boi de piranha, um espantalho dos males locais e nacionais.

No vídeo exibido pela internet, tão paéticas quanto as cenas da agressão do grupo recrutado para bagunçar o lançamento do livro foram as imagens do congraçamento dos principais líderes políticos maranhenses, todos de oposição, presentes ao ato (incluindo políticos do PT maranhense, sob a camisa de força do lulismo). Dentre eles, dois ex-governadores, o recém-derrotado Jackson Lago, principal adversário dos Sarney, e José Reinaldo Tavares, cria da família até que o choque de interesses entre os grupos que se lançam ao butim público gerou fricção pessoal, que levou ao rompimento, sem nenhum motivo de relevância a fundamentar a dissidência. Lago tentará vol tar ao governo em 2010 pelo PDT, a despeito de sua aparência física debilitada, e Reinaldo quer ser um dos novos senadores, pelo PSB. Mas o que representam de verdadeiramente novo para o Maranhão?

Nada. Não passam da outra face de Sarney, face que o próprio Sarney já foi (e da qual, hoje, é uma farsa). Em 1966 ele deu o último golpe na maior de todas as oligarquias políticas que havia no Estado, do sagaz e decidido Vitorino Freire. Para comemorar a façanha, contratou um documentário com ninguém menos do que Gláuber Rocha, o gênio do Cinema Novo. Com seus 10 minutos de duração, o filme é um primor - e não apenas da arte de fazer um filme com pouco no bolso (mas não tão pouco assim: sempre há mecenas atrás de um intelectual de aluguel, ainda mais quando dotado de um título que lhe serve de habeas corpus preventivo), muitas idéias na cabeça e uma câmera na mão.

Com sua boa estampa a servir de cenário para suas palavras de compromisso, Sarney aparece no filme a atacar as bases do velho Maranhão da pobreza e do anacronismo: os delegados de polícia, que mantêm o povo submisso, impõem a violência e reprimem os inimigos até a destruição; e os coletores de renda, que atarracham os pobres e aplicam os rigores da lei aos que, não sendo “da casa”, não se beneficiam de suas exceções convenientes.

Sugestivamente, no seu discurso de posse, lido diante de uma massa humana compacta em frente ao Palácio dos Leões, sede do governo, Sarney cita o marquês de Pombal. Na associação, procura destacar o iluminismo do dirigente sem se dar conta da sua própria condição de déspota. Num lugar tão destituído de meios, como o Maranhão e arredores, não há escapatória: as mudanças só podem ser promovidas se à frente delas estiver um déspota, dotado, porém, de esclarecimento, de luzes; na forma de um programa, de uma diretriz, de uma esperança.

A do governador eleito de 1966 era o paredão de concreto construído sobre o leito do rio Parnaíba, a hidrelétrica de Boa Esperança, a dizer quase tudo pelo seu próprio nome: a esperança de mudar a realidade ultrajante do seu Estado (e do vizinho Piauí) através da oferta de energia abundante. Desde então, se houve um setor sobre o qual José Sarney mais imprimiu sua influência, independentemente da posição na hierarquia do poder em que estivesse, esse setor foi o da energia. Boa Esperança entrou em atividade e o Maranhão continuou o mesmo. Depois veio Tucuruí, no vizinho do outro lado, o Pará, onde também dá as cartas (como no Amapá, que lhe deu o mandato de s enador, já impossível na terra natal). O Maranhão continuou o mesmo?

Pelo lado do desenvolvimento humano, um pouco pior até. Mas não é o mesmo do ponto de vista da sua imagem, do seu perfil. As imagens captadas por Gláuber Rocha em 1966 não cabem no Maranhão de 2009 porque a realidade física é muito diferente. A capital, engordada de uma forma sem paralelo, é maior e mais complexa, como núcleo e vetor de um processo econômico dinâmico. O maior trem de carga do mundo despeja seu espólio de riquezas naturais, extraídas das minas de Carajás, no Pará, no porto da ponta da Madeira, que é o segundo terminal de drenagem de recursos naturais do Brasil, dos maiores do planeta.

São Luís abriga um dos maiores complexos industriais de alumina e alumínio do mundo, comandado há 30 anos por duas grandes multinacionais, que mandam sua produção para fora e lançam sobre a ilha 43 mil toneladas de material tóxico. Está em andamento em Bacabeira o projeto de uma das maiores refinarias de petróleo do país, que só não parece cair do céu porque emitirá em sua direção 10% a mais desses vapores venenosos. Sem que o povo maranhense tenha a possibilidade de meditar e decidir sobre essas maravilhas da economia, que podem também assumir a forma de presentes de grego.

No seu quase meio século de hegemonia política, como poucas na história brasileira, José Sarney pode alegar que contribuiu com seu despotismo esclarecido para a primeira realidade. Não pode negar que sua participação foi decisiva para a segunda, que se expande como ameba, sugerindo que, da maravilha da economia, pouco sobra para o habitante do Estado empobrecido. Se o saldo da trajetória política do sátrapa maranhense é altamente negativa, como registra o livro dos dois jornalistas, sem aprofundar a história nem expô-la em sua amplitude, não há motivo para esperar que seus adversários e inimigos, como os que estiveram no dia do lançamento de Honoráveis Bandidos, possam oferecer alternativa real ao próprio Sarney, dos quais ou são herdeiros ou são a outra face da mesma moeda. O Maranhão, é verdade, saiu na frente na corrida eleitoral. Mas em direção ao passado, não ao futuro.

LFP @ novembro 15, 2009

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