sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago, parte 3: Israelenses aprenderam bem as lições recebidas dos nazistas


24/06/2009 - 09:33 Alfonso Daniels Enviado especial a Lisboa


Na terceira e última parte da entrevista concedida a Opera Mundi, o escritor português José Saramago expressa decepção com atuais líderes latino-americanos, deposita esperança em Barack Obama e critica sem dó os israelenses por sua política em relação aos palestinos. “A Cisjordânia é uma espécie de queijo gruyère. Na cabeça de muitos políticos, há ideias de um Grande Israel que não admite a existência de um povo palestino. Agora o Holocausto é sofrido pelos palestinos”, afirma.

O fato de você ter sido criado no campo explica seu lendário pessimismo?
Não sei como nasceu em mim essa tendência de ver o lado escuro das coisas. Uma coisa é certa: nunca fui um menino alegre. Pelo contrário, fui melancólico, sério, gostava de fazer longos passeios solitários pelo campo. Acho que as pessoas nascem assim.

Só tive a consciência de ver o outro lado das coisas quando tinha uns 20 anos. Tinha a sorte de assistir em Lisboa a espetáculos de ópera do balcão superior, e à frente ficava o camarote real decorado com uma enorme coroa. Vista da plateia e dos outros balcões, era dourada. No entanto, vista de trás, não estava completa, era oca, empoeirada, com teias de aranha, e entendi que, para conhecer as coisas, é preciso dar-lhes a volta completa. Isto se tornou uma espécie de regra de vida e de algum modo contribuiu para meu pessimismo, pois as coisas vistas por trás normalmente são piores.

Você se tornou menos pessimista com o tempo?
Não, nada. Não melhoramos, nada está melhorando. Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, discutia-se muito na Europa sobre progresso técnico, progresso moral, e o que está claríssimo é que, do ponto de vista técnico e tecnológico, nos desenvolvemos a uma velocidade extraordinária, mas no progresso moral andamos para trás. E não há nada no mundo neste exato momento indicando que vamos melhorar. Não vamos melhorar.

Você deposita alguma esperança na ascensão dos movimentos sociais na América Latina?
Tive contato com mapuches no Chile e na Argentina, com os zapatistas no México... Estes movimentos nascem com enorme generosidade de intenções, mas veja a Nicarágua: derruba-se o ditador, instala-se um movimento revolucionário e o que é a Nicarágua hoje? Um desastre.

Veremos o que acontece na Bolívia com Morales. Chávez sofre da tentação perigosa do autoritarismo. Agora, o melhor que ocorreu nesta região é que os Estados Unidos deixaram de se interessar exageradamente por ela como acontecia no passado, apoiando ditadores criminosos, e Obama não parece acreditar em aventuras como essas.

O que você pensa de Fidel Castro?
Conversamos três, quatro vezes. A revolução cubana mobilizou o entusiasmo de milhões de pessoas no mundo, pôs fim a governos corruptos e a aplaudimos. Mas o mal que se faz agora em nome de um suposto bem futuro me parece um erro intelectual gravíssimo, pois não se pode ter a segurança de que num futuro as coisas serão melhores, o pensamento utópico não tem sentido.

É como nas guerras: os pais se sacrificam para que os filhos se beneficiem da paz, mas a paz não chega nunca, e sempre pais e filhos são chamados para morrer. Existem, isso sim, alguns indícios positivos, há negociações entre os EUA e Cuba. É como um jogo de pôquer, para ver quem tira mais proveito da negociação.

Considerando o colapso do comunismo, você ainda se considera um comunista?
Mudar por que e para quê? Por algo que é melhor? Em que sentido? Teria vergonha de abandonar o que penso, embora o que penso não tenha nenhuma aplicação prática hoje. Mas em todo caso prefiro ficar onde estou a me transformar em outra pessoa. Sou um comunista hormonal, em meu corpo há hormônios que me fazem crescer a barba e outros que me fizeram ser comunista. Não quero me transformar em outra pessoa.

Mas comunista em que sentido?
Há uma citação de Marx e Engels que usei em um de meus livros e que resume tudo: "Se o homem é formado pelas circunstâncias, é preciso formar as circunstâncias humanamente." As circunstâncias nos formam, mas só um louco, um idiota, dirá que as circunstâncias que nos estão formando agora são circunstâncias humanas. É justamente o contrário, embora eu seja consciente do fracasso do projeto comunista.

Além de suas opiniões esquerdistas, você é possivelmente mais famoso por ter comparado os territórios palestinos com Auschwitz durante uma visita a Ramallah em 2002, causando um enorme escândalo...
O que eu disse é que havia encontrado o espírito de Auschwitz em Ramallah. É outra maneira de dizer que os israelenses aprenderam muito bem as lições que receberam de seus carrascos, os nazistas. Há algo de nazista no espírito do exército de Israel. Quando os (judeus) ortodoxos são pagos para não fazer mais nada na vida além de crianças, é um pouco similar às doutrinas genéticas do nazismo, as mulheres em clínicas para fazer filhos para a glória da Grande Alemanha. É uma loucura e é preciso denunciá-la, doa a quem doer.

Auschwitz é uma espécie de muro atrás do qual os israelenses se justificam para fazer todo tipo de coisa, coisas que os nazistas fizeram com os judeus que morreram nos campos de concentração. A Cisjordânia é uma espécie de queijo gruyère. Na cabeça de muitos políticos, há ideias de um Grande Israel que não admite a existência de um povo palestino. Agora o Holocausto é sofrido pelos palestinos.

Você realmente acredita que as duas situações são comparáveis?
Uma comparação quantitativa, não, pois nos campos morreram 6 milhões de judeus, isso não é comparável. No entanto, a partir de 1948, quando mais de um milhão de palestinos tiveram de ir embora, perdendo suas casas, suas terras, ocupadas por aqueles que chegavam nos barcos ingleses e norte-americanos, não vejo muita diferença. Não são 6 milhões de palestinos mortos, mas são suficientes para dizer que isto não pode continuar assim, que os palestinos têm o direito de ter um Estado, um lugar onde possam viver. Uma morte é o mesmo que mil mortes, isto não se mede pela quantidade.

Por que você não critica outros conflitos similares, como os bombardeios em massa de civis tâmeis no Sri Lanka, noticiados recentemente?
Em outros lugares, quase sempre sabemos o que está acontecendo, mas quase nunca sabemos por que está acontecendo, este é o problema. Os tâmeis normalmente são apresentados com cores sinistras, provavelmente com razão, mas ignoramos o que realmente ocorre por culpa de uma imprensa que informa mal. Por isso, muitas vezes é difícil ter uma opinião objetiva sobre o que acontece. Isto não nos impede de opinar em casos como o de Israel e da Palestina, onde as coisas estão bastante claras.

Leia as outras partes:
1ª: "Sou um comunista hormonal"
2ª: Uma autobiografia seria a coisa mais chata do mundo
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