Artigo
O rei da quitanda
Por Lúcio Flávio Pinto em 18/01/2005
Fonte: Jornal Pessoal
O poder de Romulo Maiorana Júnior, o principal executivo do maior grupo de comunicação do Norte do país, contrasta com a situação de um Estado destituído de informação, de opinião e de posição. O grupo Liberal é mais poderoso do que o Estado no qual atua. Mais do que um título, esse é um epitáfio: o que lhe dá força é o que enfraquece o Pará.
Aos 45 anos, Romulo Maiorana Júnior é um dos homens mais poderosos do Pará. Exibe esse poder de várias maneiras. Em duas semanas seguidas, entre o final do ano passado e o início deste mês, ocupou páginas e páginas de seu jornal, O Liberal, com fotos e mais fotos suas, registrou seu repentino segundo casamento, o recebimento do título de um dos líderes setoriais nacionais no setor de comunicações (outorgado mais uma vez pelo jornal Gazeta Mercantil no "Fórum de Líderes Empresariais") e uma visita exclusiva ao Mangal das Garças, antes da inauguração da obra pelo governo do Estado, como que para sacramentá-la.
Rominho é jornalista, mas nenhum dos editoriais bissextos publicados em O Liberal com sua assinatura foi escrito por ele. Falta-lhe a mais remota das intimidades com as artes e ofícios do jornalismo. Já viajou por meio mundo, mas não fala uma língua além da que traça com alguma dificuldade desde o nascimento. Não se conhece nenhuma contribuição original do seu intelecto, na forma de livro, palestra ou mesmo conversa informal.
Quando se permite sair do seu círculo íntimo, contempla os circunstantes com um ar blasé de enfado que nada tem a ver com a iconoclastia do déjà-vu. É desinteresse mesmo, ou alheamento. Conta-se que na jornada da campanha Andando pelo Pará, em Santarém, depois de subidas e descidas, vais-e-vens, fez sua primeira - e talvez primal - observação com a pergunta: este rio é o Tapajós? Ninguém fez pim-plim, mas bem que podiam chamar os nossos comerciais. Ou fazer baixar o pano.
Está aí, justamente, uma das fontes principais do poder de Romulo Júnior: a TV Liberal é uma das afiliadas da Rede Globo de Televisão. Essa conquista multiplicou a força que a corporação tinha quando o pai dispunha apenas de um jornal, já em carreira ascendente contra dois concorrentes, a Folha do Norte pré-moribunda e A Província do Pará claudicante. A retransmissão das imagens da Globo era feita pela TV Guajará, de Lopo e Conceição de Castro. Mesmo com todo trabalho de aproximação que empreendeu junto a Roberto Marinho, Romulo Maiorana pai não teria conquistado o trunfo se não contasse com a imperícia do antigo afiliado.
Na época, RM não pôde proclamar a vitória. Havia um veto não assumido dos militares dominantes ao seu nome. Associavam-no a uma das expressões dos maus hábitos políticos locais, de mãos dadas com negócios escusos, que atraía o furor moralista do regime estabelecido em 1964: o contrabando. Romulo tinha ligações com esse mundo por suas duas vertentes: o próprio contrabando e o pessedismo, centrado num homem pessoalmente honesto, Magalhães Barata, o maior líder político do Estado, cercado de corruptos por todos os lados. Dea, viúva de Romulo, é sobrinha de Barata.
Por isso, o novo afiliado da Globo teve que colocar sua TV Liberal formalmente sob o controle de outras quatro pessoas. Três lhe devolveram imediatamente a outorga de confiança quando o veto dos militares (que nem queriam sair em fotografias ao lado do cap das comunicações) foi extinto. Com um, Romulo precisou negociar pacientemente, usando como intermediário o principal dos seus advogados e um dos seus maiores amigos. Limpo o caminho, ele foi se distanciando dos concorrentes, perdendo-os de vista graças ao seu modo muito peculiar - e muito eficaz - de administrar seus negócios, sempre neles reinvestindo, ainda que pelo primado da imobilização em ativo fixo, com poucas sobras para a qualificação de pessoal.
Quando morreu, quase 18 anos atrás, deixou aos herdeiros uma empresa que liderava em todos os segmentos do mercado, com vantagem sem igual na história das comunicações no Pará, azeitada e com muitas reservas em caixa, além de planos de expansão em pleno andamento, como era sua característica: o crescimento em moto contínuo, sem descanso. A doença fatal, embora cruel, deu-lhe tempo para encaminhar a sucessão.
Ela estava posta quase naturalmente: o mais velho dos dois filhos homens, entre cinco mulheres, levava seu nome (mais uma garantia da marca RM, que começou a imprimir no comércio varejista de Belém) e já principiava, a enorme distância dos irmãos, a secundá-lo quando em vida. Romulo Junior parecia ter herdado o instinto do negócio, uma das qualidades do pai, e um certo feeling pelo jogo político. Mas parecia faltar-lhe experiência, assessoria e uma dose de bom senso, de olhar autocrítico.
Houve alguns momentos muito difíceis para o grupo Liberal depois da morte de Romulo. Do ponto de vista operacional, a compra de uma impressora sofisticada, mas superdimensionada para as necessidades e características da empresa. Além disso, com um inconveniente não detectado por ocasião da compra: devido a sua dimensão, ela exigia que o jornal se transferisse da sede, no centro velho da cidade, para novas oficinas capazes de suportar a dimensão da máquina e seu impacto quando em funcionamento.
O novo prédio de O Liberal é uma das mais bem instaladas sedes de jornal do país. Em particular, o gabinete do principal executivo não tem paralelo com o de nenhum outro publisher do país. É, de longe, o mais suntuoso, do tamanho de um latifúndio - e com o mesmo significado etimológico: muito espaço para pouco uso. O mesmo qualificativo de suntuosidade Rominho espera ver aplicado à mansão que está construindo no condomínio fechado do Lago Azul, na saída da cidade, numa área de cinco mil metros quadrados, mil deles construídos, com requintes hollywoodianos.
Tudo se tornou hiperbólico para Romulo Júnior. Ele passou a exigir o máximo, a partir da constatação de que seu poder aparenta ser ilimitado. Pode obrigar a justiça a passar por cima das exigências do rito do casamento civil e a Igreja a abrir mão de certas regras do preceito religioso para não prejudicar a pompa e circunstância de um matrimônio decidido a tempo e hora pelo rei, o noivo, conforme regras que prescreve do trono.
Romulo Júnior, porém, nos editoriais hebdomadários que assina, atribui a fonte de seu poder ao próprio trabalho (não exatamente matutino, muito pelo contrário), à colaboração dos funcionários da empresa (com os quais tem raros contatos) e à credibilidade dos veículos de comunicação sob seu mando principal (os seis irmãos são secundários; um deles, a irmã mais velha, abriu mão de participar da sociedade, vendendo sua cota de 7%, e a mãe antecipou os direitos do primogênito masculino e do caçula, Ronaldo).
Este é o ponto que mais interessa, entre tantas histórias paralelas. As pessoas acreditam no que publicam ou dizem os veículos de comunicação do grupo Liberal? Sem dúvida, acreditam (muitas também acreditam no chupa-chupa, entidade extraterrestre ressuscitada na capa da última edição dominical do jornal, com direito a suíte no dia seguinte). Sem isso, os dois jornais diários da casa (O Liberal e Amazônia Jornal) não seriam lidos com exclusividade por 8 dentre 10 compradores de impressos nem a emissora de televisão (em rádio a situação não é a mesma, mas a radiofonia é a mais delgada das fatias do bolo) teriam as folgadas lideranças de que desfrutam.
Grande parte dos consumidores que acreditam no produto dos veículos Liberal acredita por falta de opção. O quase-monopólio dos Maiorana cria um estado de inércia difícil de romper: seus clientes não se sentem estimulados a buscar sucedâneos, ou simplesmente essa alternativa não existe para eles. No caso da TV, em função do domínio arrasador da Globo. Em relação à mídia impressa, porque nenhum competidor enfrentou-os com o investimento requerido para derrubar uma situação de décadas, nem o Diário do Pará, do deputado federal Jader Barbalho, claudicante na profissionalização e tímido no capital de risco.
O fiel leitor e telespectador, que acredita no que lê e ouve, está realmente sendo servido pela verdade? Tem condições e capacidade de verificar a qualidade do produto que lhe servem para não comprar gato por lebre?
Estas perguntas precisam ser respondidas, principalmente em função do domínio que o grupo Liberal exerce em Belém, sem paralelo em qualquer outra capital brasileira. Em todas elas a disputa é bem maior. Esse quase-monopólio dá à empresa um poder sem medidas, do qual usa e abusa, tanto sobre o público quanto sobre anunciantes e os poderosos de ocasião, impondo-lhes suas condições leoninas, interesses e caprichos.
Muitos temem mais do que admiram o grupo Liberal. A empresa tem por norma não publicar cartas consideradas inconvenientes, nem que a justiça tente lhe obrigar a cumprir a lei (determinação que raramente chega ao fim em eventuais processos). Além disso, mata em vida aqueles que desafiam sua vontade. Uma vez indexado, o desafeto jamais sairá nas páginas de O Liberal ou na tela da TV Liberal. Para pessoas públicas, isso pode equivaler mesmo à morte.
Por isso, a controvérsia foi varrida dos veículos da casa. Ela também não se interessa pela opinião alheia. Exercita seu mando conforme as variações de interesse. Nos momentos em que se negou a comparecer ao caixa da corporação para atender a cobrança feita, a Companhia Vale do Rio Doce, a maior empresa em atividade no Estado, foi vítima de campanhas sistemáticas e transformada no inimigo público número um do Pará. Quando se curvou, recebeu os afagos devidos. Assim foi, sistematicamente, até que a empresa, sob nova direção privada, decidiu enfrentar o ultraje de ser levada às barras do tribunal como má pagadora. O objeto da cobrança, dessa vez, era uma duplicata, mas uma duplicata fria, ou seja, sem endosso do emitente, não confirmada por ele. A CVRD reagiu com uma ação de indenização civil, além de contestar a cobrança indevida.
Parecia que começaria uma guerra entre gigantes, mas tudo não passou de mais uma batalha de Itararé, aquela que ficou célebre por nunca ter havido. As ações passam agora por um momento de inanição no fórum de Belém. As partes fizeram libações noturnas no Rio de Janeiro e apararam as arestas. As moedas da Vale voltaram a tilintar no caixa do Liberal e a besta-fera de semanas antes virou príncipe da responsabilidade social, etiqueta que pode se transformar em gazua quando usada com responsabilidade para inglês ver.
Foi assim, antes, com a Rede Celpa e o Banco da Amazônia. A Rede também tentou se livrar de patrocínio furado ao grupo. Depois de saraivadas de matérias de denúncia, seguiu o caminho de todos os anunciantes. O Basa foi ameaçado com escândalos anunciados por ter veiculado apenas meia página de balanço, que coube em três páginas do concorrente. Mas quando publicou integralmente o balanço seguinte, as operações nebulosas ficaram subitamente solares e nunca mais se falou nisso. No recente escândalo do Banco Santos, escândalo mesmo, o Basa se beneficiou do silêncio obsequioso do grupo.
O contraste é brutal e chocante para qualquer pessoa que usa a memória como ferramenta de informação. Num momento o acusado é fulminado com editorial de primeira página, manchete de capa de jornal, como há muito tempo não se pratica na imprensa em qualquer parte do mundo. Parece que mereceu o ataque terrível por razões substantivas. No entanto, uma vez cumprida a função que lhe é atribuída, como anunciante, o tratamento muda do vinagre para o vinho, sem qualquer explicação ao distinto público, sem um mini-editorial (ou suelto) que seja. O jornal pode mudar de opinião, mas precisa explicar por que era contra antes e ficou a favor depois. Sem essa salutar providência, a repentina transformação pode ser creditada a interesses ocultos, escusos. Em linguagem de rua, chantagem.
Foi sempre assim numa publicação subterrânea, o Jornal Popular, criado e recriado por Silas Assis. Mas esse jornal era pouco mais do que um pé-de-cabra. Sua tiragem costumava ser uma fração da anunciada, boa parte dela distribuída gratuitamente, conforme o objetivo do editor. Um mosquito diante do elefante. Os métodos, porém, o aproximaram desse tipo de comportamento que o grupo Liberal costuma ter quando seus interesses comerciais são contrariados. A parte editorial passa a ser uma extensão a serviço do comércio, sem a menor preocupação com a coerência, a consistência e o direito de explicações do público.
O que sustenta o poder inquestionável de Romulo Maiorana Júnior não é o porte do seu negócio. Os Yamada, nesse ponto, são bem maiores. É a natureza especial do seu produto, a informação. Para RM Júnior, nos momentos de conflito, o que menos interessa é se a informação é certa, mas se é útil, se servirá aos seus propósitos. O resto é vã filosofia, ainda que de filosofia o personagem nada saiba.
Uma empresa jornalística pode - e às vezes deve - usar o caráter especial do seu produto contra adversários que a agridem ou para alcançar objetivos legítimos. O Wall Street Journal, segundo jornal em tiragem dos Estados Unidos e de uma influência sem a menor possibilidade de comparação com o segundo, o débil USA Today, empreendeu, na década de 20, do século passado, uma campanha contra a General Eletric, que era a maior empresa americana e do mundo na época.
A GE, contrariada por uma reportagem do WSJ, mas sem contestá-la (por ser verdadeira), decidiu, em represália, cortar a publicidade que fazia no jornal. A partir daí a poderosa GE começou a conviver com um hábito indesejado: ver todos os dias suas mazelas serem expostas no jornal, que deslocou dois dos seus melhores repórteres para cobrir a indústria em tempo integral. Mazelas reais, muitas das quais desconhecidas pelo próprio board da GE, não invenções ou chantagens, eram publicadas diariamente. Incapaz de contraditar as acusações, a GE restabeleceu a programação publicitária e o jornal voltou a dar a cobertura rotineira à empresa.
Não é esse o procedimento do grupo Liberal. Com seu jus império, a empresa se tornou árbitro único do próprio poder, independentemente do poder legalmente constituído e até das boas regras de convivência. Sua relação com Jader Barbalho, outro pólo de mando no Pará, com origens semelhantes e desdobramentos que divergiram até o antagonismo radical, é revelador desse modus operandi.
O grupo Liberal participou, como nunca, sob os Maiorana, da eleição de 1990. Apoiou Sahid Xerfan, candidato do governador Hélio Gueiros, e pintou Jader como a quintessência de tudo que não presta. Como de regra, perdeu a eleição (essa tem sido a única forma de reação aos Maiorana da opinião pública, protegida pelo amálgama da vontade coletiva anônima). O nome de Jader sumiu do noticiário da corporação. Mesmo ao tomar posse do maior cargo público do Estado, não recuperou seu nome: foi referido, em página interna, como "o governador". Com os primeiros anúncios legais (os editais), recuperou o nome próprio. Com os anúncios institucionais, foi conquistando, sucessivamente, foto, primeira página e a anistia incondicional. O ladrão da véspera virara, ao som das caixas registradoras em fúria, o estadista do dia. Mas até o dia de uma nova cobrança sem retorno, quando raios voltaram a ser disparados dos fundos do Bosque.
O procedimento contra o pai se repete com o filho. Empossado prefeito do segundo maior município paraense, Helder Barbalho não existiu para O Liberal e TV Liberal nas festas do dia 1º. Se não existiu para os Maiorana, não existiu para o mundo paraense, que, sabendo das coisas pelos veículos do grupo, sabe quase nada sobre si - e o dobro sobre o mundo. É, de fato, um poder superlativo. Tanto que, dizem os confidentes, o filho Barbalho pediu ao pai que diminuísse a troca de tiros com os Maiorana para que sua nascente carreira de prefeito não enfrente um caminho cheio de espinhos, que os adversários - comerciais e políticos - já lhe apresentaram. Dizem que Jader atendeu o pedido e mandou desarmar um front, que fora municiado como jamais havia acontecido desde que o império Maiorana se consolidou, na década de 70, à base da unanimidade compulsória.
Houve alguma situação parecida na história anterior do Pará? Em matéria de imprensa, só com a Folha do Norte. Mas Paulo Maranhão, o dono do jornal (sem uma arma formidável como a afiliação à Rede Globo), precisava matar um leão por dia. Não só na caixa registradora, administrada pelo filho, João, mas, sobretudo, na redação. Paulo Maranhão raramente assinava seus editoriais, artigos e notas, mas todos eles saíam de sua fervente cabeça e, pelo estilo, eram logo identificados por quem sabia ler. Era o que dava legitimidade e grandeza ao seu papel. Pois se o que distingue a mercadoria jornalística é sua natureza subjetiva e especial, de informação, saber o que constitui uma informação é o que o autoriza a exercer o seu poder, para o bem ou para o mal, mas com seu valor intrínseco. Paulo Maranhão jamais iria a Santarém para perguntar se aquele rio lindo que a banha é o Tapajós. Já sairia de casa com a informação no bolso do colete.
Quando o negócio da informação se reduz a uma quitanda, o poder jornalístico se torna uma fonte de poder pessoal, imenso para quem o exercita e absolutamente vazio para todos os demais, e a informação, uma banana. É o que, em boa medida, explica o estado de prostração no qual o Pará se encontra, incapaz de entender seu drama, por falta de informações, e submisso à vontade do soba, que o manipula conforme seus caprichos.
O poder enorme de Romulo Maiorana Júnior, solitário e caprichoso, é a contrafação da impotência do Estado no qual esse poder se nutre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário