Polícia ataca 'preventivamente' protestos na zona leste da capital, que foram dissolvidos antes de começar. Corporação soma novos casos a seu histórico de violações de direitos
São Paulo – Convocadas para a manhã de hoje (12) na zona leste de São Paulo, as duas manifestações de rua que pretendiam criticar a realização da Copa do Mundo horas antes da abertura do torneio foram dura e inexplicavelmente reprimidas pela Polícia Militar. Com um efetivo multitudinário, a corporação sitiou toda a região no entorno das estações Tatuapé e Carrão do Metrô, onde os manifestantes haviam combinado de se encontrar para saírem em passeata. Caminhões do choque, viaturas e motocicletas estavam apoiadas por helicópteros e tropas da cavalaria. A violência das forças de segurança foi tão grande que as marchas sequer puderam sair do lugar.
Eram 9h15 da manhã quando a reportagem da RBA chegou à região. Um grande número de soldados já estava instalado dentro da estação Carrão do Metrô, revistando pessoas que “aparentavam” ser manifestantes: jovens trajados com roupas pretas, com cortes de cabelo incomuns, negros e com barba. Mochilas foram abertas e supervisionadas. De lá partiria uma das passeatas marcada para hoje, cuja intenção era caminhar até o cordão de isolamento em torno da Arena Cortinthians, em Itaquera, estádio que sediará o jogo de abertura da Copa. Antes da chegada dos manifestantes, três linhas de soldados do Batalhão de Choque já estavam em formação de ataque do lado de fora da estação, com escudos, armas e bombas de gás lacrimogêneo.
Poucas pessoas atenderam à convocação da frente de movimentos e coletivos Se Não Tiver Direitos, Não Vai Ter Copa, que na manhã de hoje tinha a intenção de realizar sua décima manifestação contra a Copa do Mundo. Os que compareceram para dar seu último grito de revolta contra o que consideram “injustiças” cometidas durante a organização do torneio não tiveram sequer a oportunidade de se reunir no local marcado. Após um leve bate-boca entre soldados e cidadãos revoltados com o tomando do aparato policial, às 10h15, a tropa deu início à ofensiva, lançando bombas de gás lacrimongênio contra as não mais de 50 pessoas que, então, estavam por ali. Ao menos uma delas (foto) foi detida.
Depois da correria, os manifestantes tentaram se reagrupar ao redor da estação Carrão do Metrô. E passaram a gritar palavras de ordem contra os policiais que acabavam de agredi-los gratuitamente. “Não acabou, tem de acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”, bradavam. A reação não tardou, e veio com mais uso da orça. Quinze minutos depois do primeiro ataque, por volta das 10h30, uma nova e inexplicável investida policial acabou ferindo uma jornalista da rede de televisão norte-americana CNN. A repórter foi atingida no pulso por um estilhaço de bomba de gás lacrimogênio e atendida por socorristas voluntários do Grupo de Apoio ao Protesto Popular (Gapp) até a chegada dos bombeiros.
Após dois ataques seguidos contra os maniestantes, que já começavam a se dispersar, a PM resolveu agredir deliberadamente as dezenas de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas que registravam a operação. Às 10h40, um policial sem etiqueta de indentificação saiu detrás da linha de escudos e lançou uma bomba de gás lacrimogênio diretamente contra os profissionais. A RBA presenciou que, ao todo, contando com a jornalista norte-americana, pelo menos cinco pessoas acabaram feridas por estilhaços nos braços e nas coxas. Entre elas estava um morador de rua.
Questionado sobre o motivo das agressões, o coronel Savioli, que se identificou como comandante da operação, recusou-se terminantemente ao diálogo: A sociedade não tem o direito de saber o que está acontecendo? “Não”, respondeu. Mas, durante um bate-boca com a RBA, um soldado (que estava identificado, mas escondia seu nome com a alça da espingarda) mostrou com que disposição os homens da PM foram orientados a lidar com as manifestações de hoje na zona leste. “Tá reclamando de quê? Não viesse aqui, ué. Você sabia que ia ter bomba, não sabia?”, hostilizou, arrematando: “Imprensa ridícula.” Às 11h, uma hora depois do pretendido início de um protesto que nunca aconteceu, os arredores da estação Carrão estavam liberados.
Novo massacre
Impedidos em seu direito constitucional à reunião e expressão, os manifestantes reprimidos na estação Carrão decidiram se deslocar por 300 metros até a sede do Sindicato dos Metroviários de São Paulo. O prédio, localizado na esquina da Rua Serra do Japi com a Avenida Radial Leste, serviria de concentração para outro protesto convocada para a manhã de hoje. O ato fora organizado pela central sindical CSP-Conlutas, ligada ao PSTU. Além de denunciar os gastos públicos com a organização da Copa no Brasil, a manifestação bradaria contra a morte de 13 operários em obras relacionadas com o torneio e pediria a readmissão de 42 trabalhadores demitidos após a greve do Metrô, finalizada na terça-feira (10).
Como a RBA adiantou ontem, a ideia da CSP-Conlutas não era caminhar com destino ao Itaquerão ou tentar inviabilizar o jogo inaugural da Copa do Mundo. No entanto, os manifestantes queriam sair em passeata pela região do Tatuapé, onde se localiza o sindicato, para denunciar o torneio. Assim como ocorrera pouco mais de uma hora antes, porém, foram impedidos pela PM. Com escudos, bombas e balas de borracha a postos, homens do choque se posicionaram na esquina da Radial Leste para deter qualquer tentativa de fechar a avenida. Insatisfeitos, porém resignados, os organizadores do protesto acataram as determinações policiais e resolveram permanecer – com seus discursos, panfletos e faixas – em frente ao sindicato.
Não demorou para que outro grupamento fortemente armado da PM viesse em sentido contrário e encurralasse na Rua Serra do Japi as cerca de duas mil pessoas que haviam atendido ao chamado da CSP-Conlutas. Revoltados com o acosso policial, jovens mascarados começaram a hostilizar verbalmente a tropa, que respondeu descarregando sua munição. Então instalou-se um confronto entre rapazes com pedras e soldados com escudos, armaduras e artefatos menos letais. Pelo menos um fotógrafo feriu-se com estilhaços em toda a perna – mas não foi o único.
A situação se agravou quando, por volta do meio-dia, a polícia avançou sobre os manifestantes que estavam postados pacificamente diante do sindicato. Como a tropa não se sensibilizou com os gritos de “Chega de bomba, de repressão, é meu direito estar na manifestação”, os organizadores do protesto resolveram usar o carro de som para pedir que as pessoas entrassem na sede do sindicato. “Estamos encurralados. Não temos condições de enfrentar a PM”, apelavam os autofalantes. “Vamos abrir as portas do sindicato, entrar e dar continuidade ao nosso protesto lá dentro.” Os manifestantes assentiram e continuaram tocando seus tambores no interior do prédio. Lá, estavam a salvo da agressões, mas não dos efeitos do gás lacrimogênio.
Sem a menor possibilidade de diálogo com a PM, os organizadores do protesto decidiram, às 12h50, encerrar o ato. Ao microfone, o presidente do Sindicato dos Metroviários, Altino de Melo Prazeres Júnior, pediu que os manifestantes que ainda estavam na rua adentrassem à sede da entidade para que, depois, pudessem “negociar” sua saída com o comando policial. Minutos antes, o carro de som transmitia aos presentes o recado de um dos oficiais encarregados da repressão: “O major nos avisou que em dez minutos vão liberar a rua. Eles vão passar por cima da gente”, advertiu.
A postura dos sindicalistas desencadeou pequenos desentendimentos com manifestantes que, pese às amaeaças policiais, queriam continuar protestando nas ruas. Quando o líder sindical Mancha, da CSP-Conlutas, usou carro de som para “diferenciar” perante a polícia os manifestantes “pacíficos” dos “baderneiros”, foi hostilizado por jovens mascarados. “Pelego”, gritavam. Os manifestantes também se envolveram em bate-bocas e empurra-empurra entre si quando os metroviários resolveram fechar o portão de sua sede – o que evitaria a entrada de mais pessoas caso a PM retomasse os ataques. “Entreguistas”, tiveram que escutar.
Por volta das 13h, os manifestantes já deixavam o prédio com destino às suas casas. Saíram lentamente, em fila, alguns de mãos dadas, outros nitidamente com medo de novas investidas do choque. Enquanto eles se dirigiam para as estações de Metrô dos arredores, o carro de som rogava à PM: “Não ataquem as pessoas. Elas estão apenas querendo ir embora.”
A Defensoria Pública de São Paulo destacou uma comissão para acompanhar os protestos da Copa do Mundo na manhã de hoje. “Pelo que vimos, a polícia está bem decidida em dispersar as manifestações”, avaliou o defensor Fabrício Bueno Viana. “As violações de hoje não diferem muito das que temos observado em protestos passados.” Para Viana, a polícia paulista está agindo de maneira desproporcional. “Ajuizamos em abril uma Ação Civil Pública em que cobramos a adequação de procedimentos policiais aos direitos humanos. Por exemplo, não usar balas de borracha ou gás lacrimongênio, e portar sempre a identificação. Hoje alguns não tinham.” Viana considerou a ação policial um “exagero” e analisou que, ao impedir que a movimentação dos manifestantes, a PM violou o direito de manifestação.
Procurada pela RBA, a assessoria de imprensa da Polícia Militar se negou a prestar quaisquer informações sobre a ação desta manhã na zona leste. Não informou o número de pessoas detidas, os motivos das detenções, o número de contingente deslocado para reprimir os protestos ou as razões que levaram seus homens a agirem com truculência e impedir o início das passeatas. Em sua página na internet, porém, a corporação afirma que “agiu para impedir que baderneiros fechassem a Avenida Radial Leste, o que afetaria o direito de ir e vir de milhares de pessoas, inclusive aquelas que vão assistir a abertura da Copa do Mundo”. E nada mais.
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