Safatle: “É inaceitável o tipo de silêncio tácito que está ocorrendo, salvo raríssimas exceções muito pontuais". Foto: Marcos Santos/USP Imagens |
São Paulo – O HSBC é um exemplo privilegiado de como corporações que estão no limite da criminalidade impõem na economia internacional seus interesses. O professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Vladimir Safatle indica a instituição financeira como exemplo de promiscuidade entre mercado financeiro, política e mídia, com raízes no crime, em entrevista à Rádio Brasil Atual [dia] 20/02.
“Desde sua criação, o banco tem as piores credenciais possíveis. Essa instituição bancária foi criada em 1860, depois da última guerra do Ópio entre Inglaterra e China, quando os ingleses forçaram a abertura dos portos chineses para que o tráfico da droga continuasse”, relata.
“Os chineses resolveram impedir o comércio de
ópio porque a população já estava entrando em um processo de ser
dizimada pela droga. Então, o banco foi criado exatamente para financiar
o tráfico de drogas, entre outras coisas. E ele cresceu, a partir dos
anos 70, comprando bancos dos Estados Unidos e da Europa, muitos dos
quais tinham carteiras extremamente problemáticas", diz Safatle. "Foi o
caso do banco do finado Edmond Safra, que tinha entre seus clientes
traficantes de diamantes e negócios com a máfia russa. O Safra foi
assassinado em uma situação, no mínimo, bastante misteriosa. Seu banco
iria ser comprado pelo American Express e o negócio foi desfeito por
causa de problemas internos."
Esse foi o processo de crescimento do banco,
segundo o professor. "Comprou o Bamerindus aqui, um banco que estava com
problemas enormes. E não só isso, quer dizer, ele é reincidente, faz
anos que o banco tem sido julgado por várias instâncias mundiais,
exatamente por esses seus negócios com tráfico, negócios ilícitos. Foi
declarado culpado nos Estados Unidos por um caso que envolvia tráfico
com colombianos e mexicanos. Só que pagou uma mixaria de um milhão e
novecentos mil dólares de multa.”
O que ocorre com o HSBC não é novo, é uma
prática comum, para Safatle: “E não é para estigmatizar o banco, mas
para esclarecer o que é o sistema financeiro internacional. São
corporações que estão acima dos governos. Não só não se quebra como não
se regulamenta um banco como o HSBC, porque ele está tão acima dos
governos que o seu diretor à época desses chamados Swiss Leaks era
pastor anglicano e hoje é ministro do David Cameron, no governo
britânico."
O professor ressalta que se percebe uma relação
incestuosa entre o sistema financeiro e a classe política. "É o diretor
do banco que vira ministro de um gabinete da Inglaterra, que, com
certeza, não vai desenvolver políticas que sejam estranhas ou contra os
interesses do sistema financeiro que ele representa muito bem. A
imprensa começou a questionar o ministro e ele não dá resposta alguma,
porque ele sabe que está numa situação de ser completamente intocado,
não há nada que possa acontecer com essas pessoas", lamenta.
Para o filósofo, todo mundo fica completamente
exacerbado por problemas como tráfico de drogas, de armas, guerras. "Se
não existissem esses bancos, que têm como uma suas finalidades lavar
esse dinheiro, com certeza o problema não seria dessa magnitude em
hipótese alguma. Só há crime nessa magnitude porque há um sistema
financeiro que é completamente conivente, cresceu dentro desse meio.”
Ele destaca que não é só a tráfico de drogas
que o HSBC está ligado, mas que há também fraudes de evasão fiscal, no
momento em que a economia mundial e os estados estão em crise, tentando
segurar o que restou de bem-estar social. “Os países da União Europeia
socorreram bancos falidos. Então, quando os bancos cometem crimes, o que
se espera é que os responsáveis sejam punidos, presos, mas não é isso o
que ocorre”, observa.
Safatle lamenta que a imprensa brasileira não
noticie os fatos, ao contrário da europeia. “É inaceitável o tipo de
silêncio tácito que está ocorrendo, salvo raríssimas exceções muito
pontuais. Na imprensa francesa ou britânica, mesmo nos Estados Unidos,
foi dito que vão utilizar esses dados para tentar reaver o dinheiro."
Nesses casos, a imprensa apresentou os nomes: "O Le Monde, que
mobilizou um pouco tudo isso, chegou a brigar com seus acionistas porque
um deles fez uma declaração dizendo que achava um absurdo que o jornal
expusesse esses nomes. Ou seja, a imprensa fez o seu papel. No caso
brasileiro é inacreditável".
O Brasil é, a princípio, o nono país em número
de contas nessa filial genebrina do HSBC. São 8.667 contas, das quais
55% são contas de nacionais, ou seja, são mais de 4 mil pessoas. "A
pergunta que eu gostaria de fazer é quem são essas pessoas. O sujeito
não abre uma conta em um banco suíço com esse histórico à toa. Quem são
as pessoas que fizeram evasão fiscal, fraude fiscal e coisas dessa
natureza?”, questiona.
Alguns nomes de brasileiros que possuem contas
no HSBC com depósitos sem origem comprovada na agência em Genebra foram
conhecidos por intermédio de sites angolanos. “Aí apareceu o nome do rei
do ônibus do Rio de Janeiro, o nome da família Steinbruch, que é do
grupo Vicunha. Essas pessoas cometeram crimes, quais foram os crimes? É
muito estranho que não só a imprensa, mas, ao que parece, a própria
Receita Federal adiou a análise de coisas desse tipo."
Para Safatle, isso demonstra um dado muito
evidente: "A elite rentista brasileira é completamente blindada, sabe
que é e tem uma relação incestuosa entre poder político e estrutura de
comunicação, que faz com que em última instância seja um grupo só, de
uma forma ou de outra, que sabe que pode fazer o que quiser, porque sabe
que não existe nenhuma possibilidade de a Justiça pegar, a não ser
existam embates internos, em brigas internas, aí sim vão pegar um ou
outro".
O professor da USP se pergunta como ampliar
essa discussão oculta na imprensa tradicional. “Os nomes que vazam dessa
lista de brasileiros com contas no HSBC em Genebra são de envolvidos na
Operação Lava Jato, da Polícia Federal. Quer dizer, os nomes são
divulgados dependendo do interesse do meio de comunicação. Só são esses
os nomes dos 4 mil correntistas, só são esses dez ou 15 que tiveram
problemas? Isso é uma brincadeira.”
A extrema gravidade da história exige que se
faça algo. “Se tem algo que destrói a moralidade é a parcialidade, é
você começar a perceber que há um uso estratégico do discurso sobre a
moralidade, porque é um uso que serve simplesmente para você voltar suas
atividades contra seus inimigos. Nesse momento, a moralidade perde
completamente seu valor. Eu diria que na política brasileira isso
acontece a torto e a direito, é um traço característico da política
brasileira."
Safatle lembra: "A moralidade exige a simetria
completa dos julgamentos. É julgar todos da mesma forma, independente do
que vá acontecer. Isso falta dentro da política brasileira. É por isso
que não se consegue fazer com que essas indignações se transformem em
saltos qualitativos da política. E aí vira simplesmente um jogo em que
se tenta colocar um ou outro contra a parede.”
Safatle identifica que há um processo de
desgaste constante do governo pela mídia e, por isso, os nomes
envolvidos em negócios ilícitos no HSBC são seletivos. “Se a gente
quisesse mesmo fazer uma limpeza geral no que diz respeito ao caso
Petrobras, por exemplo, todos denunciantes falaram: 'Olha, desde 1997 eu
recebo propina'. Ou seja, tem um dado estrutural, não existe um caso de
governo ou de partido, é um caso de estrutura, em que vai todo mundo. E
nessa situação o mínimo que se espera é que se mostre claramente a
extensão do processo e a necessidade geral de punição. Mas isso nunca
ocorre, isso desgasta toda a força da indignação moral”, lamenta. “Todo
mundo que conhece um pouco da sociedade brasileira sabe que lá você vai
encontrar alguns dos nossos empresários mais conhecidos, alguns dos
políticos mais conhecidos.”
Quanto ao silêncio que a Rede Globo dedica ao
caso do HSBC, Safatle comenta: "Isso é uma piada, é completamente
inacreditável. Eu gostaria que eles explicassem muito claramente qual é a
noção deles de notícia, porque é surreal. Você pode pegar as páginas do
The Guardian, jornal britânico, ou do francês Le Monde, e a televisão de maior audiência não dá nada? O que é isso? Eles transformam o jornalismo em uma grande brincadeira".
Para a secretária-geral do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Ivone Maria da Silva, é
uma "vergonha" que esse caso só apareça em alguns sites e blogs e seja
ignorado pelos grandes meios de comunicação, que não têm interesse em
divulgar os nomes de brasileiros que estão nessa lista com depósitos sem
origem comprovada no HSBC em Genebra. “Um dos clientes que já apareceu
na lista foi o Clarín, da Argentina. Não vamos ficar surpresos se
os meios de comunicação aqui do Brasil também aparecerem na lista, ou
se os donos desses meios estiverem guardando dinheiro lá fora para não
pagar impostos. Talvez por isso essa lista não seja divulgada. Começaram
a soltar os nomes seletivamente, e por isso surgem os nomes
relacionados com a Lava Jato. Mas tinha que soltar o nome de todo
mundo”, diz.
Confira a íntegra da matéria:
(Rede Brasil Atual)
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