quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Pará: farra, tragédia e clientelismo na área cultural

A farra dita musical com dinheiro público



(Espero que esta matéria, publicada na última edição do Jornal Pessoal, tenha a repercussão que merece. É um verdadeiro escândalo. Certamente o governo, guardião relapso do dinheiro público, nada dirá a respeito. Mas a sociedade deve cuidar dos recursos do erário, dilapidados por essa ação imperial e insensata do presidente da Fundação Tancredo Neves, nosso muito simpático compositor e cantor Nilson Chaves. Ele deveria continuar a cuidar apenas de melodias. No exercício de um cargo público, promove verdadeira ação entre amigos.)
George Wellington Costa Santos, de 39 anos, era assistente cultural de iluminação do teatro Margarida Schivasappa. Ele trabalhava no teto do palco quando se desequilibrou, caiu no fosso e morreu. Seu corpo só foi descoberto algum tempo depois. George não usava equipamentos de segurança e estava sozinho.
Uma semana depois do acidente os nove técnicos de outro teatro administrado pela Secretaria de Cultura do Estado, o Waldemar Henrique, decidiram parar de trabalhar. A greve, por tempo indeterminado, foi decidida pela mesma falta de segurança que vitimou o colega.
A direção do teatro experimental já adotara algumas providências para resolver os problemas do espaço, mas nem essa iniciativa tranquiliza os funcionários. Além de estarem expostos a acidentes, eles temem por sua segurança física e do público. O prédio fica na praça da República. À noite, a iluminação do local é deficiente, atraindo criminosos.
Os dois casos podem ser apontados como efeitos da falta de uma política cultural no Estado. A frase sonora pode parecer vazia e retórica. Mas quando o vácuo engendra situações concretas é que se vê a distorção do que devia ser uma política e não é.
Belém se tornou uma expressiva praça da ópera no Brasil, sempre competindo com Manaus, como se as duas cidades ainda vivessem o fastígio da borracha. A capital paraense pelo menos tem jurisdição sobre um novo ciclo extrativo, o mineral, até mais grandioso do que o da seringueira.
Mas usufrui pouco dessa circunstância. Tanto porque a retenção do resultado da atividade produtiva é residual como porque nem essa parcela insignificante que aqui fica é aplicada com alguma competência. Faz-se política pessoal na cultura, sem atenção para com seu significado social. Ao povo, as batatas.
Não, porém, aos amigos do rei. Quando se fala de cultura e de reinado a associação sempre é feita com o arquiteto Paulo Chaves Fernandes, o mais duradouro dos secretários de Estado do tucanato paraense. Não é despropositada a correção. Paulo é autocrático e se lixa para os que discordam da sua política majestática.
Ainda assim, ele tem uma obra para apresentar, na qual é tão impossível ignorar suas qualidades quanto deixar de atentar para seu caráter elitista e às vezes superficial, inconsistentemente original, maneirista. A figura dominante de Paulo Chaves serve de biombo para esconder uma atuação muito mais merecedora de crítica, que é a do presidente da Fundação Cultural Tancredo Neves.
O compositor e cantor Nilson Chaves é, em tese, subordinado ao secretário de cultura. Na verdade, entretanto, dispõe de plena autonomia, que talvez lhe haja sido delegada informalmente pelo governador Simão Jatene, também ele um cantor e compositor na origem, antes de trocar o violão pelo bastão do poder (sem falar na vara de pescar, seu lazer atualizado).
Nilson se transformou no maior empresário da música paraense, elevada à categoria de prioridade máxima. Paga cachês a inumeráveis artistas, como se realmente fosse o chamado promotor de eventos, embora lançando mãos de recursos do tesouro – e à larga. Os cachês são pagos por livre arbítrio. Não há um colegiado ao qual o presidente da fundação exponha seus critérios de escolha e os valores pagos. Age com o absolutismo dos reis – e reina de verdade sobre a atividade musical. Nem Paulo Chaves dispõe de tanto poder, que parece ilimitado.
É o dinheiro que falta para promover de fato a cultura, o Estado no seu papel de avalizador do antigo e fomentador do novo, da vanguarda e da tradição, das raízes da criação e dos seus desdobramentos incrementados. Ao invés disso, uma pessoa sozinha abre o caixa para pagar apresentações de artistas, uns já conhecidos, outros obscuros; uns de talento reconhecido, outros não só ilustres desconhecidos como sofríveis de qualidade.
Independentemente dos valores, individuais ou coletivos, não há critérios públicos para justificar as deliberações absolutistas de Nilson Chaves. Uma seleção dos cachês artísticos pagos, com inexigibilidade de licitação (ou seja, por contratação direta, sem as formalidades devidas), mostra essa falta de critérios, por valor, tempo de validade e beneficiado.
– R$ 10 mil para uma única apresentação de Os Baladeiros do Forró, na homenagem ao dia dos pais em Baião.
– R$ 100 mil para seis grupos de forró (Bom de Farra, Sorriso Moleque, Travel Time, Nega Loira, Marcelo Aguiar e Forró do Bacana), por quatro apresentações no programa de verão de Curuçá.
– R$ 57,6 mil para oito grupos (Bandas Atos, Santidade, Rei dos Reis, Torre Forte, Conexão Direta, Expressão de Louvor, Guerreiros do Céu, Plenitude e Semente) que se apresentaram num festival de música gospel em São Félix do Xingu.
– R$ 7,2 mil para Geovane Belo, Catalina Murchio, Juraci Siqueira, Antonio Eulálio, Edgar Macedo e Márcia Galvão que participaram do projeto A Noite é Uma Palavra, em Icoaraci.
– R$ 30 mil em favor de Amauri Savino e banda por duas participações na Feira da Indústria e Comércio de Óbidos.
– R$ 40 mil para as bandas Phan do Melody, Axé e Cia. e Kixuera por uma noite de apresentação na festividade do Círio, em Belém.
– R$ 5 mil para o Charme do Choro fazer uma apresentação em festividade em Igarapé-Miri.
– R$ 5 mil para a Pegada do Axé fazer o mesmo em Portel.
– R$ 2 mil para a funkeira A Policial Sedutora se apresentar em Soure.
– R$ 2,5 mil para o Disgrace and Terror participar do Marajó Rock Fest em Breves.
– R$ 25 mil para as bandas Karina e Portal do Melody por uma apresentação cada no projeto Arrastão de Todos os Santos, em Belém.
– R$ 50 mil em favor das bandas Phan do Melody, Itinerário Boomerang, Banda Mix e Forró dos Maias por uma apresentação cada num festival em Ananindeua.
– R$ 50 mil para o Batidão do Forró, Forró dos Maias, Linda Nil e Banda itinerário do Boomerang num único dia de um festival em Ananindeua.
– R$ 10 mil para o Pankdão do Forró se apresentar no baiole da independência da Vigia.
R$ 60 mil para a Banda Ari Santos Show, Banda Diversom, Maestro Rubenito e Banda Novo Som por duas apresentações em Igarapé-Miri.
– R$ 50 mil em favor de Juck Box, Pegada do Axé, Parceiros.Com e Love Play por uma apresentação em Ananindeua.
– R$ 50 mil para Gospel Jovem Samba, Eletro Gospel, Ministério Paraense e Levada da Fé por uma apresentação em Ananindeua.
– R$ 15 mil em favor da Banda Sayonara num “evento” da Secretaria de Cultura no Moju.
– R$ 41,2 mil para as bandas Expressão de Louvor e Guerreiros do Céu e dos cantores Cézar Azevedo, Elídio Neto, Dileã Maia e Elian Maia por uma apresentação em Xinguara.
– R$ 48,8 mil para as bandas Conexão Direta, Acordes de Sião, Black Dance, Banda Atos e cantores Nil Lopes e Jatene Costa se apresentarem em Xinguara.
– R$ 150 mil distribuídos entre as bandas Forró Original, Banda Hits, Grupo Arraial do Labioso, Banda Tropa do Forró, cantora Bianca Furtado e cantores Michael Jackson Cover e Estrela do Melody por uma única apresentação em Ananindeua.
– R$ 27 mil para Pinduca e Banda e Banda Nossa Senhora de Sant’Ana por duas apresentações em Cametá.
– R$ 100 mil para oito bandas (Cicleteiro, Axé e Cia, Cafeína, Banda Mix, Pankadão do Forró, Itinerário Boomerang, Algo Mais e Cronistas de Rua) por uma apresentação em Muaná.
– R$ 50 mil para as bandas 007, Ar 15, Viviane Batidão e Banda e Bruno e Trio se apresentarem em Portel.
– R$ 295 mil para Pedrinho Calado, Banda do Eletro, Daniel do Acordeon, DJs Edilson e Edielson, Pérola Negra, Açaí Pimenta, Jorginho e banda Nsync, Sandro Aragão e Valdo Ferrari por duas apresentações na ilha de Marajó.
Há dezenas de outros pagamentos de cachê artístico sem concorrência pública, mas só estes 26 representam despesa para o Estado de mais de 1,3 milhão de reais. O que vai sobrar para a cultura paraense dessa gastança? Qual a qualidade específica desses grupos e indivíduos para receberem diretamente dinheiro do Estado pelo critério de inexigibilidade de licitação? São famosos? São únicos? Sua qualidade já teve reconhecimento público e notório? Qual o critério de escolha, valoração e distribuição dessa verba pública?
Pelo valor dos cachês pagos, o Pará é um grande centro musical e o poder público o maior ativista da cultura popular. Dá para ver que alguns grupos se repetem na obtenção do cachê e agora circulam pelo Estado sob mais do que generoso (permissivo) patrocínio oficial. O presidente da fundação escolheu seus parceiros e colegas de música, embora abrindo uma admirável exceção: Paulo Sérgio Fonseca dos Santos recebeu nada menos do que 25 mil reais para ser o diretor artístico no projeto A Noite é uma Palavra, entre março e dezembro deste ano, valor que talvez seja debitado na conta de uma exceção literária na salada de decibéis supostamente musicais.
Tanta dissonância devia merecer a atenção e a apuração das autoridades competentes. Para mim, trata-se de um escândalo musical. Ou, como assinalava o rock de uma época antediluviana: schandal and shame in the family. No caso, família Nilson Chaves e bandas.

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