quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

''Guerra'' ao tráfico no Rio segue fracasso da Guerra do Terror de Bush

Veículos da Marinha durante patrulhamento na Vila Cruzeiro,
na Penha, zona norte do Rio; veja outras imagens.
Gustavo Bianezzi São Paulo

Soldados em fileira marcham pelas ruas de uma cidade latino-americana. Blindados avançam destruindo carros e motos. Golpe de Estado? Não, é mais um capítulo da chamada “guerra ao tráfico” em sua versão militarizada e cada vez mais midiática. Embora traga poucas novidades em relação aos embates anteriores, as proporções atingidas nesta nova edição merecem não o tratamento megalomaníaco e anti-histórico da grande mídia, mas análises críticas que o contextualizem no novo paradigma de conflitos do século XXI.

Por mais que queiram acreditar no contrário, os brasileiros não estão isolados das tensões mundiais e dos avanços na tecnologia e doutrina militar. Pelo contrário, o crescimento do BOPE como grupo especializado em assassinatos precisos o coloca cada vez mais em evidência ao lado de grupos como o israelense Mossad e os diversos órgãos norte-americanos ligados a CIA e empenhados em matar alvos valiosos nas favelas de Bagdá. O enfoque urbano das Forças Armadas Brasileiras no Haiti e seu emprego em franca situação de combate no Complexo do Alemão demonstram importantes avanços na doutrina de conflito urbano do exército, uma habilidade cada vez mais requerida nas guerras do século XXI. O Brasil pode sim, participar de uma vanguarda militar preocupada principalmente em guerrear nos cantos miseráveis do planeta.

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Mas, peraí: guerra? Contra quem? Contra quem atiraram os blindados M113 da marinha, os cerca de 2 mil soldados do exército, os helicópteros de combate da aeronáutica? Se, para haver guerra, é preciso que haja um inimigo armado e determinado a combater, que seja colocado em evidência o “inimigo” em questão: ele é jovem, negro, usa chinelos e tem pouquíssima capacidade disciplinar e estratégica.

Nas palavras do coordenador do programa AfroReggae, José Júnior, muitos são “moleques” e praticamente todos estão desmotivados ao enfrentamento. Sintomaticamente, nenhum deles se rendeu quando a possibilidade foi oferecida. Praticamente todos estavam muito bem armados com metralhadoras pesadas, lança-foguetes e até morteiros. Embora cercados, estavam em situação estratégica favorável, com franca visibilidade do morro e a possibilidade de organizar emboscadas e armadilhas em uma área perigosa para os invasores, que adentraram em plena luz do dia. Falando friamente, tornar a operação custosa para as autoridades (em termos de baixas e equipamentos) em um contexto de alta exposição midiática era uma opção possível para os miseráveis combatentes.

A questão é: por que não houve combate? É um dilema para qualquer historiador das guerras explicar como não foram usadas as metralhadoras 0.50 contra os helicópteros desta vez, como não foram utilizados os morteiros contra as tropas ou os lança-foguetes contra os blindados. A resposta, claro, está no histórico de ações policiais deste tipo no Rio de Janeiro e no cálculo feito pelos combatentes em questão. Em diversas vezes, o “Estado” chegou às favelas na sua forma policialesca e em todas as vezes ele retrocedeu após os combates iniciais. Como disse o sociólogo e ex-subsecretário de segurança do Rio de Janeiro Luiz Eduardo Soares em entrevista na segunda-feira (29/11) ao programa Roda Viva, da TV Cultura, “o acordo prevalece no Rio de Janeiro”.

Miopia histórica

Claro, a perda de milhões em armamento e drogas corrobora a tese do sociólogo de que o modelo econômico do tráfico focado no território estaria cedendo para uma nova estratégia descentralizadora e menos custosa em termos de vidas humanas e dinheiro. O que a mídia tentou mostrar como fuga covarde dos traficantes, ainda no contexto da invasão da Vila Cruzeiro, na verdade seria uma estratégia de guerrilha bastante comum em outros contextos conflitivos. Aliás, não ter um território fixo e estar pronto para movimentar-se e a seu equipamento a qualquer momento foram a chave do sucesso da Al-Qaeda no Afeganistão. Vale ressaltar que a permanência do Exército Brasileiro em uma situação de combate em território nacional é - ou deveria ser - insustentável do ponto de vista institucional e político, e o BOPE não tem disposição de ser uma tropa de ocupação, e sim de vanguarda e choque.

Contra os discursos das autoridades do Rio de Janeiro, o tráfico ainda parece apostar que esta “guerra” terminará quando as câmeras da TV forem desligadas. Mais ainda, o verdadeiro confronto ocorrerá em seguida e envolverá barganhas e embates com as milícias, cada vez mais organizadas e disciplinadas em torno da ocupação de territórios. No mais, resta perguntar o significado do conceito “guerra ao tráfico”. É uma miopia histórica achar que este tipo de conflito é uma especificidade do Brasil ou do Rio de Janeiro; basta olhar para a tenebrosa história da intervenção norte-americana na Colômbia para ter um quadro trágico dos desdobramentos da ação militar voltada para reforçar a ilegalidade do consumo de drogas. A rigor, o tráfico de drogas é uma atividade econômica e social, e a história nos ensina que declarar guerra a estas atividades sempre resulta em fracassos retumbantes.

Tal qual a “Guerra ao Terror” do governo Bush, não existem objetivos claros definidos para os comandantes militares e não existe um inimigo físico em situação de combate permanente. O que existe, no Rio de Janeiro assim como em Kandahar, é uma massa empobrecida e vitimizada por gangues armadas de um lado e de outro, uma força militar disposta a vasculhar “casa por casa” e com pretensões de ocupar o território a longo prazo.

*Gustavo Bianezzi é pesquisador, bacharel em Relações Internacionais e mestrando em Ciência Política pela Universidade de Campinas (Unicamp).

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