quinta-feira, 15 de outubro de 2009

BENTO XVI: PAPA OU INQUISITOR?


Joseph Ratzinger, agora papa Bento XVI, não é apenas o principal representante das alas mais conservadoras do catolicismo. Tendo estado à frente, por 24 anos, da Congregação para a Doutrina da Fé — a versão “modernizada” do Tribunal do Santo Ofício, ou seja, da Inquisição —, Ratzinger foi responsável direto pela crescente “linha dura” nas questões doutrinárias da Igreja e pelo inquisitorial silenciamento de todo e qualquer um que questionasse suas posições.
Wilson H. Silva,
da redação do Opinião Socialista

Na tarde de 19 de abril, a fumaça branca saindo de uma chaminé da Capela Sistina e os sinos de Roma anunciaram a eleição do cardeal alemão Joseph Ratzinger, de 78 anos, como novo papa da Igreja Católica. Uma hora depois, na Praça São Pedro, em frente ao Vaticano, milhares de católicos saudaram entusiasticamente Bento XVI, o nome escolhido por Ratzinger.

Mesmo na praça, contudo, em meio à comemoração, não foram poucos os que expressaram descontentamento ou “preocupação” com a escolha. Segundo o jornal "O Estado de S. Paulo", edição de 19 de abril, católicas como a alemã Annette Haegele não esconderam que consideram o novo papa “conservador demais”, o que pode dificultar a aproximação dos jovens, o diálogo com outras igrejas e religiões e, fundamentalmente, a necessidade de “adequar” a Igreja para acompanhar as mudanças de comportamento entre seus próprios fiéis.

Uma preocupação também expressa mundo afora por gente da própria Igreja que já esteve na mira de Ratzinger. Nos Estados Unidos, por exemplo, a irmã de caridade Jeannine Gramick — a quem o cardeal tentou proibir de realizar serviços religiosos para gays e lésbicas — declarou: “Essa escolha é devastadora. Evitará que o catolicismo saia da Idade Média e entre no século XXI”.

Razões para tal preocupação, realmente não faltam. Ratzinger é o principal representante do que há de mais conservador e reacionário no catolicismo atual. E não só ao que se refere aos temas comportamentais. Braço direito de João Paulo II e presidente da Congregação para Doutrina da Fé desde 1981, ele foi o responsável direto pela elaboração da linha dura doutrinária adotada pelo falecido papa.

Para traçar um perfil do novo papa e imaginar o que se espera dele, seu posto até ontem, aliás, é um excelente ponto de partida. A Congregação é o atual nome do Tribunal do Santo Ofício (ou Inquisição), criado no século 12 e responsável por um dos mais nefastos capítulos da história do cristianismo.

Criado para “defender” a doutrina cristã, o Tribunal, durante séculos, promoveu um terrível espetáculo de crueldade e assassinatos praticados contra todos aqueles que questionassem ou desafiassem o poder da Igreja. Taxadas como hereges, milhares de pessoas em todo o mundo (somente no Brasil, cerca de mil pessoas foram processadas) foram torturadas, tiveram seus bens confiscados ou, pior, arderam nas fogueiras da Inquisição.

Os “crimes” poderiam ser qualquer coisa: praticar medicina popular ou, inclusive, o aborto, transformava uma mulher em bruxa; afirmar que os planetas giravam em torno do Sol, e não da Terra, como vez Galileu Galilei, em 1633, era um questionamento imperdoável da doutrina cristã; ser judeu, homossexual ou ateu, então, eram crimes inadmissíveis.

Hoje, na impossibilidade de se utilizar da “fogueira purificadora” da época medieval, a Congregação, quando presidida por Ratzinger, se utilizou de outros métodos para impor suas posições. Contudo, as vítimas continuam basicamente as mesmas, a começar daqueles que, dentro da própria Igreja, buscam adotar posições mais progressivas.

Situação que teve como principal exemplo a verdadeira cruzada que Ratzinger moveu contra a Teologia da Libertação (TL), cuja vítima mais conhecida foi o frade franciscano brasileiro Leonardo Boff (ex-aluno de Ratzinger, na Universidade de Tubingen, na Alemanha), condenado, em 1985, quando era um dos principais porta-voz da TL, ao “silêncio obsequioso”, o que lhe impedia de se pronunciar sobre absolutamente qualquer coisa.

Aliás, uma declaração dada por Boff ao jornal O Estado de S. Paulo, em 20 de abril, é sintomática do impacto que a nomeação de Ratzinger teve sobre aqueles que, dentro da própria Igreja, esperavam um papa mais “moderado” ou “progressista”, depois do longo e conservador papado de João Paulo II: “terei muita dificuldade em amar esse papa”.


A trajetória de um reacionário

Filho de um delegado de polícia, Ratzinger nasceu em 16 de abril de 1927, na Baviera, na Alemanha. Apesar de seu pai ter se oposto ao nazismo, durante a 2ª Guerra Ratzinger deixou o seminário, que freqüentava desde os 16 anos, para integrar a unidade área do exército alemão, da onde só desertou em 1944, quando estava evidente que a guerra teria um final nada satisfatório para o nazismo e a Alemanha.

A passagem pelo nazismo (antes de ser soldado, ele também foi membro da Juventude Hitlerista), hoje “menosprezada” em sua biografia, lhe rendeu um período de prisão pelo exército norte-americano, quando da ocupação da Alemanha.

Retornando ao seminário, Ratzinger tornou-se especialista em Teologia, área em que ele construiu uma rápida e sólida carreira nas universidades e no interior da Igreja. Em 1968, como professor universitário, ele se opôs radicalmente à rebelião da juventude da época e começou a pregar aberta e ferozmente contra o comunismo, chamado por ele de “a vergonha de nosso tempo”. Quase dez anos depois, em 1977, tornou-se bispo de Munique e, na seqüência, foi nomeado cardeal.

Em 1986, já à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, escreveu um furioso documento condenando os homossexuais (considerados “imorais, artificiais e nocivos” e portadores de uma “maldade moral intrínseca”) e a união civil. Em 2000, desferiu um novo ataque através de documento, desta vez contra anglicanos, luteranos e protestantes em geral, afirmando que a Igreja Católica é o único caminho para a salvação.

Nos anos seguintes, Ratzinger se dedicou a condenar o movimento feminista e as mulheres em geral (que, segundo ele, não deveriam sequer servir como assistentes paroquiais ou cantoras de coro), o aborto, a camisinha (a abstinência sexual seria o único “método” válido para evitar a Aids), o divórcio, o rock (!!!) e, novamente, os homossexuais, produzindo uma tese que, de tão ridícula, é digna de nota: gays e lésbicas até poderiam ser aceitos na Igreja, contando que concordassem “viver em castidade”.

Por estas e outras, não é de se estranhar que, dentro da própria Igreja, o cardeal alemão tenha ganho “singelos” apelidos como “rottweiler de Deus” e “cardeal panzer”, em alusão ao famoso tanque alemão.

Ao mesmo tempo, Ratzinger já chegou a defender que a pena de morte, quando aplicada “dentro da lei” é válida para punir alguém que é culpado de crimes graves ou que represente um perigo para a sociedade e a “paz social”. Conhecido também como “cão de guarda da doutrina cristão”, o novo papa também assumiu uma posição no mínimo curiosa diante da onda de denúncias, comprovadas, sobre pedofilia no interior da Igreja: “Estou convencido que as notícias freqüentes sobre padres católicos pecadores [pedófilos] fazem parte de uma campanha planejada para prejudicar a Igreja Católica”.

Figura central na estrutura de poder do Vaticano há mais de duas décadas, a transformação de Ratzinger em Bento XVI não chega a ser uma surpresa. Sua proximidade com João Paulo II remonta à eleição do papa anterior, quando o cardeal alemão foi um dos principais articuladores para a escolha de Karol Wojtyla.

Além disso, e importante lembrar que Ratzinger contou com um “colégio eleitoral” que lhe era totalmente favorável. Dos 115 cardeais que participaram da eleição, somente ele próprio e um outro não foram indicados pelo falecido papa, aconselhado, sempre, pelo próprio Ratzinger.

Escolhido para dar continuidade (e, se possível, aprofundar) ao legado conservador de João Paulo II, seu papado, que deverá ser curto, devido à sua idade, contudo, não estará isento de contradições. Em todo o mundo, houve reações negativas à sua escolha. Em pesquisa feita pelo Portal Estadão, 68,44% afirmaram que não gostaram da escolha do papa. Na Argentina, pesquisa semelhante feita pelo Clarín detectou que 44,6% preferiam qualquer outro candidato. Na própria Alemanha, antes mesmo da escolha, a maioria também era contra sua indicação.

Direita em êxtase (e Lula, também)

Enquanto os setores mais progressistas da Igreja e católicos do mundo inteiro deram sinais de insatisfação, a direita mundial saudou Bento XVI como uma verdadeira “benção de Deus”.

Nos Estados Unidos, George W. Bush celebrou a eleição de Ratzinger como um sinal positivo de que haverá continuidade da parceria entre os EUA e o Vaticano na promoção da “dignidade humana ao redor do mundo”. Ou seja, que Bush continuará a ter um forte aliado em sua cruzada contra temas como o aborto e a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo e um cúmplice para seu avanço recolonizador sobre o mundo. Na Itália, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi também declarou-se “encantado” com a escolha. Declarações semelhantes também foram dadas por Jacques Chirac, na França e pelo primeiro ministro espanhol, José Luis Zapatero.

No interior da Igreja, o principal dirigente da ultra-reacionária Opus Dei, afirmou que este “é um momento de grande alegria para toda a Igreja”. A razão de tamanha alegria é o fato de Ratzinger ser um apoiador incondicional deste grupo, supra-sumo da direita católica.

No Brasil, como não poderia deixar de ser Severino Cavalcanti definiu a escolha como “iluminação divina” que vai se colocar na defesa de “todos os princípios éticos e morais”. E, mais uma vez, repetindo sua ladainha demagógica, Lula fez coro com seus novos “companheiros” da direita mundial afirmando que está seguro de que o novo papa “promoverá com empenho a paz e a justiça social, ao mesmo tempo em que reavivará os valores espirituais e morais da Igreja”.

Pensado para ser um papado de transição, que consolide a política de João Paulo II, o mandato de Bento XVI, muito provavelmente, tentará fortalecer o catolicismo para que a Igreja volte a cumprir um papel central na divisão do poder mundial. Uma pretensão que esbarra em problemas que vão desde a perda de fiéis para outras religiões até a resistência do próprio Vaticano às mudanças morais e comportamentais que estão acontecendo mundo afora.

O fato de terem escolhido um Inquisidor como Ratzinger para cumprir este papel, apesar de toda resistência que há quanto ao seu nome, parece indicar que a cúpula do Vaticano está disposta a não medir esforços nesta tarefa. Ou seja, que diante das muitas contradições do mundo atual, a Igreja Católica irá atuar com mão de ferro na tentativa de preservar seus interesses.
--------------------------------------------------------------------------------
REPRODUÇÃO AUTORIZADA COM A CITAÇÃO DA FONTE.

Nenhum comentário: