Artigo:
O estranho processo dos Autos da Devassa contra os índios Mura do Rio Madeira e nações do Rio Tocantins (1738-1739)
por Yurgel Caldas*
Resumo:
Documento que inaugura os
processos jurídicos publicados contra os índios da Amazônia, os Autos da
devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739)
mostram uma das estratégias de colonização que prepara o terreno para os
procedimentos da “guerra justa” contra grupos indígenas que, do ponto de vista
da Metrópole, impedissem as expansões política, religiosa e sobretudo econômica
de Portugal. Este trabalho tem o objetivo de fazer uma leitura crítica dos
referidos Autos da Devassa..., provocada pela flagrante manipulação das
testemunhas de acusação aos gentios citados e pela sutil disputa entre as
ordens religiosas atuantes na Amazônia pelo domínio espiritual dos nativos daquela
região, determinado muito mais por fatores econômicos que por religiosos.
Palavras-chave: Mura, colonização, Amazônia.
Introdução
O
interesse econômico na Amazônia setecentista foi determinante para o
estabelecimento de uma política de extermínio contra os índios que se
recusavam, como os Mura, a ceder espaço ao processo colonizador na região.
Fácil concluir que o conflito surge dessa conjunção de forças em ação: de um
lado a administração colonial, querendo e necessitando, a todo custo, criar
formas de exploração econômica em áreas ocupadas por grupos indígenas e
cobiçadas por forças estrangeiras; de outro, os índios resistindo ao referido
processo, com os recursos disponíveis (sabotagens, saques, ataques fluviais e
alta rotatividade no espaço da selva).
A partir
dos primeiros relatos jesuítas sobre a presença incômoda dos índios Mura na
região do rio Madeira – os quais depois espalhar-se-iam espantosamente por toda
a bacia amazônica, como mostram alguns momentos hiperbólicos do poema Muhuraida, de Henrique João Wilkens (manuscrito
de 1785 e 1ª edição de 1819) –, tais índios seriam alvo de um grande processo
de cunho jurídico, movido pelos relatos de grande parte de século XVIII.
É nesse
contexto do grande processo secular – cujo elemento central é o índio Mura, que
se torna quase que simultaneamente o acusado, o julgado, o condenado e o
apenado – que se devem ler os Autos da
devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739),
“uma das mais importantes séries de documentos da história colonial da Amazônia
oitocentista” (CEDEAM, 1986, p. 1). Assim, esses Autos da devassa... – primeiro conjunto publicado de processos jurídicos
contra índios amazônicos – constituem peça importante no contexto em que se inseriam
os procedimentos para uma guerra justa contra os gentios na colônia portuguesa.
Como aponta a “Introdução” de Adélia Engrácia de Oliveira, esses documentos podem
ser encarados como parte integrante de uma política de limpeza étnica nas
“áreas habitadas por grupos indígenas que impediam a expansão política e
econômica de Portugal” (OLIVEIRA, in CEDEAM, 1986, p. 1).
O Processo
Processo que se inicia com a
certidão do provincial da Companhia de Jesus, padre José de Souza, os Autos da devassa contra os índios Mura do
rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739) são constituídos por
catorze documentos assim discriminados:
a) o nº 1 é justamente a denúncia do
referido jesuíta;
b)
o nº 2 é
a ordem do governador do Grão-Pará, João de Abreu de Castelo Branco, para que se
faça a devassa contra os j
c)
o nº 3 – talvez
o mais importante e certamente o mais intrigante do processo, por razões que
veremos a seguir – é o inquérito das 33 testemunhas, investigado pelo ouvidor
geral da capitania, Salvador de Souza Rebelo;
d)
o nº 4 é
o parecer de José de Souza, o mesmo que inicia o processo de acusação contra os
índios;
e)
os
documentos de nº 5 a 11 englobam os pareceres dos membros da Junta das Missões –
formada por padres jesuítas, carmelitas, mercedários e capuchinhos – onde se
percebe uma disputa entre algumas ordens religiosas, principalmente entre
jesuítas e mercedários;
f)
o nº 12
trata do parecer do ouvidor geral, Salvador de Souza Rebelo, a favor da guerra contra
os Mura, mas caudaloso em relação à mesma ação contra os índios do rio Tocantins;
g)
o nº 13
consiste no parecer do governador João de Abreu de Castelo Branco, pela guerra contra
os Mura e as nações do rio Tocantins;
h) o nº 14 apresenta a decisão do
rei de Portugal, D. João V, contrária à legitimidade e à necessidade da guerra
contra os índios citados nos autos do processo.
Se Adélia
de Oliveira aponta as motivações econômicas como o motivo principal dos documentos
que compõem os Autos da devassa...,
não seria de se espantar que, à revelia da decisão régia, extra-oficialmente os
índios, sobretudo os Mura, fossem atingidos, “massacrados e atacados anualmente
pelas ‘Tropas Auxiliares da Capitania’ e por expedições primitivas diversas, o
que os fez sofrer grande mortandade, aumentada por epidemias como sarampo e
bexiga” (CEDEAM, 1986, p. 5). Logo a seguir, Oliveira revela também que em
“1774-1775 o Ouvidor Geral, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio pede a mais
enfurecida guerra contra os Mura e cerca de dez anos depois a mesma solicitação
é feita por Alexandre Rodrigues Ferreira” (CEDEAM, 1986, p. 5-6).
O apelo
comercial no contexto geral da devassa não se relacionava apenas aos Mura, que ocupavam
o caminho fluvial até as minas de Mato Grosso e a própria área de extração do
cacau, mas também dizia respeito às nações indígenas do rio Tocantins, que
estavam estabelecidas na região de acesso às minas de São Felix (atual Estado
de Goiás) e nas fazendas de gado e extração de cravos e tartarugas.
Os
documentos de nº 5 a 11 dos Autos da devassa... – pareceres dos diferentes
membros da Junta das Missões –, ao revelarem uma sutil disputa entre as ordens
religiosas que atuavam no interior da Amazônia durante o século XVIII, mostram
a grande vantagem jesuíta, granjeada no decorrer do século anterior, tanto nos
âmbitos territorial e econômico quanto propriamente na questão missionária – como
a redução de inúmeras nações indígenas, justamente para dar conta da mão-de-obra
necessária à coleta das drogas do sertão. Nesse contexto, o parecer do frei
capuchinho Clemente de São José (doc. nº 5), comissário provincial de Santo
Antonio, põe em dúvida a legitimidade e a lisura dos depoimentos das testemunhas
(doc. nº 3), desqualificadas por serem “parte interessada” no processo, visto
que “ninguém pode ser testemunha em causa própria” (CEDEAM, 1986, p. 99).
Por não
se expressarem claramente os fatos narrados, pois “se é fama constante entre 31
testemunhas que se tiraram nesta devassa, por que não depõem sequer uma de
vista? Antes só dizem umas que ouviram dizer, e outras que o sabem, mas nenhuma
dá razão do seu dito” (CEDEAM, 1986, p. 99); e por demonstrarem uma
artificialidade no conjunto dos depoimentos prestados, já que “todas [as
testemunhas] falam pelo mesmo teor, dizendo que o dito gentio tem feito muitas
mortes aos que vão às tartarugas, aos que descem de cima e aos que desceram das
minas de São Felix” (CEDEAM, 1986, p. 99-101), o frei Clemente de São José – que,
na opinião de Samuel Benchimol, exerce a função de “verdadero abogado del
diablo, en defensa de los Mura, Reos Rebeldes en el Interrogatório” (CAMACHO,
ANGEL [comps.], 1990, p. 244-245) – conclui seu parecer, considerando que,
do
sumário das testemunhas e seus ditos, não se colhe evidentemente a intenção purificada,
pois quase todas depõem pelos mesmos termos [...]. E tais não merecem muita
atenção para que por eles se lhes possa dar guerra justa, e muito menos fazem prova
os que juram (CEDEAM, 1986, p. 105).
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Em seu
segundo parecer (doc. nº 10), o frei Clemente reafirma o que já apontara na sua
primeira intervenção no processo, e ainda aproveita para atacar diretamente os
interesses do jesuíta José de Souza:
Ao que
respondo que depoimentos de testemunhas ofendidas não merecem muita atenção
[...]. Nada provam e muito menos fazem legalidade os que juram pelo que a elas
ouviram [...]. Logo, não faz prova em direito seu depoimento, de mais que o reverendo
padre [José de Souza] é testemunha injuriada [...] e testemunhas inimigas nada
provam (CEDEAM, 1896, p. 139-141).
De fato,
são dignos de desconfiança os depoimentos de muitas das 33 testemunhas. Em
todos eles, percebe-se claramente a construção de um depoimento-síntese, a
partir de um texto único, com um discurso unificador, provocando no leitor uma
forte impressão de manipulação das próprias testemunhas, como se vê no seguinte
depoimento, muito próximo, em todos os sentidos, de outros relatos:
Disse que
sabe por ouvir dizer, pública e geralmente, que o gentio bárbaro chamado Mura,
do rio Madeira, tem feito várias mortes assim a brancos como a negros que vão
àquele rio à colheita do cacau, de sorte que é tanto o temor dos moradores
desta cidade [Belém] que algum negócio de cacau que fazem é à beira do dito
rio, e que os mesmos delitos faz o gentio do rio Tocantins, impedindo as pessoas
que vêm fazendo viagem das minas para esta cidade [Belém]” (CEDEAM, 1986, p.
45)
Interessa
aqui menos saber a quem pertence o depoimento acima (Felipe Delgado) do que a quem
serve tal texto. Por isso, é importante localizar entre as testemunhas gente
ligada à exploração
econômica
atingida pela devassa (mineração e agricultura), para estabelecer as reais
intenções desse discurso que aponta o Mura como o grande responsável pelo
atraso econômico da região. Esse claro sentimento de estranheza em relação aos
depoimentos das testemunhas civis também provoca em Samuel Benchimol um
posicionamento crítico sobre o contexto obscuro do conjunto de todo o processo
envolvendo os Mura e as nações do Tocantins. Assim, o “Registro de las de claraciones
[...] da una buena idea de la trama preparada a propósito en los bastidores de
la justicia colonial, el resultado de la ingenuidad, ignorancia o servilismo de
los indagados” (in CAMACHO, ANGEL [comps.], 1990, p. 234).
Quanto às
nações do rio Tocantins – “que nem nome próprio, nem em toda devassa se lhe acha
[...] – pouco prejuízo nos fazem a nós, que vivemos delas afastados” (CEDEAM,
1986, p. 121), estando por isso livres de ações militares em seus territórios.
Nota-se, portanto, que os Mura – única nação indígena nomeada nos Autos da devassa... – pagam alto preço
pela imagem que deles fez o colonizador desde o início do século XVIII,
enquanto que as nações do rio Tocantins, que sequer são especificadas no processo,
são preservadas por serem “desconhecidas” até aquele momento, ou pelo menos não
tão perigosas quanto os Mura.
O frei Manoel de Marvão,
comissário provincial de Piedade, também percebe a falta de clareza no
depoimento das testemunhas, entretanto, ao contrário do frei Victoriano Pimentel,
considera desnecessária a guerra contra os Mura e os índios do Tocantins,
embora sugira uma “contra-guerra” de cunho defensivo, com a presença de tropas
de resgate, tanto na região do rio Madeira, quanto na do Tocantins. O que o
frei Marvão pretendia era, na verdade, a aplicação de uma “guerra justa
defensiva” – recurso utilizado em caso de ataques de índios a estabelecimentos portugueses,
impedindo assim a circulação de colonos e missionários por aquele território do
rio Madeira. Assim, Marvão parte do pressuposto de que, ao ocuparem a dita
região, os Mura deveriam ser considerados “invasores” da área virtualmente
pertencente aos portugueses.
Com isso,
o parecer de Manoel de Marvão se destaca dos demais membros da Junta das Missões,
não pela detecção da falta de consistência no teor dos depoimentos das ditas
testemunhas, mas pela inclusão no processo das tropas de resgate enquanto
elemento militar para uso econômico, pois seria a determinação de uma “contra-guerra
em defesa das canoas que vão ao dito rio” (CEDEAM, 1986, p. 127).
Em seu
longo texto, o frei Manoel de Marvão aproveita ainda para denunciar as
condições em que estavam os indígenas no território amazônico. Após considerar
que as agressões dos índios poderiam ser uma reação à escravização imposta pela
Administração portuguesa, o frei Marvão destaca:
Sendo
também certo, público e notório que todos os anos se amarram injustamente nos
sertões milhares e milhares de gentios, e se vem vender a esta cidade e
contornos dela contra as leis divinas, humanas e decretos especiais de Vª Mag.,
em cujas amarrações é sabido que os brancos matam muitos índios, e há doze anos
esta parte que eu assisto nesta cidade, e não me consta que os índios matem aos
brancos (CEDEAM, 1986, p. 129)
É preciso
deixar claro, porém, que o discurso do dito frei possui um teor menos revolucionário
que jurídico, afinado com o contexto das ordens religiosas nos sertões
amazônicos do século XVIII. Dessa maneira, o gentio que Marvão defende é o Mura
– ainda não “descido”, mas pretendido como “civilizado” pelas diversas ordens
missionárias –, mas também é o índio já reduzido, ou seja, aldeado e
estabelecido sob o domínio religioso, que estava sendo capturado pela administração
colonial. Tal situação criava um panorama favorável a um conflito aberto entre
forças religiosas e políticas, o que acabaria ocorrendo principalmente na
segunda metade do século XVIII, com a política de colonização da Amazônia,
proposta pelo Marquês de Pombal.
Daí
entende-se melhor a reclamação de Manoel de Marvão, desaprovando a ação
colonial, que agia
não só
para amarrar os índios do sertão para vir vender, mas também para levar por força
e contra as leis de Vª Mag. os índios das aldeias já cristãs, sem perdoarem aos
pescadores, sacristães e cozinheiros dos missionários, assaltando muitas vezes
de noite as residências dos padres, açoitando as mulheres para lhe dizerem
aonde estão os maridos, embebedando-as e levando também algumas (CEDEAM, 1986,
p. 129)
A mesma
conclusão chega o comissário geral dos mercedários, frei Manoel Borges, que se posiciona
a favor dos índios, ao considerar “que a devassa não culpa ao gentio destes
dois rios com crimes porque haja de se lhe dar guerra ofensiva nem defensiva” (CEDEAM,
1986, p. 145). Dos dois principais argumentos utilizados pelo mercedário, um
faz eco aos pareceres dos outros religiosos – “porque muitas das testemunhas
que juram nunca foram ao sertão, e a maior parte delas juram que ouviram [sic]
[...] porém não declaram a causa que deram” (CEDEAM, 1986, p. 145) – e outro
constitui novidade pró-índio nos autos, pois indica uma forte contradição nos
depoimentos das testemunhas. Partindo-se das declarações de que somente a nação
Mura tem provocado o terror na região do rio Madeira, e “se esta nação é de
corso, e não tem parte certa, como afirmam todos” – indaga o frei Borges – “donde
se lhe poderá dar com acerto?” (CEDEAM, 1986, p. 145).
Ao
desmontar o discurso homogêneo das testemunhas, o frei Manoel Borges acirra
ainda mais os ânimos entre as ordens religiosas presentes nos Autos da
devassa... – espécie de metonímia da Amazônia no que se refere às disputas por
terras, exploração comercial de recursos minerais e agropecuários, incluindo a
cobiçada mão-de-obra indígena e a propagada dilatação da fé cristã nos confins
do Brasil, durante o século XVIII. Assim como fizera Manoel de Marvão, o frei
Manoel Borges levanta a voz contra a prática centralizadora dos jesuítas, que
já dominavam o território amazônico desde o século anterior. No dizer de
Borges, cativar
o gentio
forro e liberto [constitui ação colonizadora da qual fazia parte a prática jesuíta,
por meio de uma] dependência [que] há muitos anos trazem os padres da Companhia
e já muito tempo se lhe respondeu a este requerimento que não era justo que à
custa da Real Fazenda se lhes limpassem os sertões para as suas conveniências (CEDEAM,
1986, p. 145)
Os
pareceres do ouvidor geral da capitania do Pará e executor da devassa, Salvador
de Souza Rebelo, e do governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, João de
Abreu de Castela Branco, são favoráveis à guerra contra os índios. A diferença
é que o texto do ouvidor geral pede a guerra somente contra os Mura, “enquanto
ao gentio do rio dos Tocantins [...] pareceu-me ser preciso preceder mais
alguma averiguação” (CEDEAM, 1986, p. 151); ao passo que o parecer do governador
condena tanto os Mura quanto as nações do rio Tocantins, pois “me parece que seja
justo e conveniente ao serviço de V. Mag. que, depois de executada a guerra com
os Tocantins, se proceda a fazê-la no rio da Madeira” (CEDEAM, 1986, p. 159).
Por fim –
após quase sete meses de trâmite documental por ocasião do processo que investigava
possíveis atitudes criminosas de nações indígenas das regiões do rio Madeira e Tocantins
(um recorde de tempo para a época) –, o parecer definitivo sobre a devassa, de
autoria do rei D. João V, consiste na desautorização da guerra aos índios
denunciados. Quanto aos Mura, o rei determina “que não está em termos de se
reputarem como justas e necessárias estas guerras” (CEDEAM, 1986, p. 163);
enquanto
que
acerca dos índios do Tocantins, o monarca luso diz apenas que “se deve ter
cuidado em não adiantar as povoações para aquela parte para melhor se observar
a proibição daquele caminho” (CEDEAM, 1986, p. 163).
Esse
aparente descaso oficial em relação ao território do rio Tocantins pode ser
explicado menos pelo fato de não haver, naquele momento (final dos anos de
1730), um comércio fluvial estabelecido entre aquela área e a capitania do Grão-Pará,
e mais pelos prejuízos com a prática do contrabando. O desinteresse da Coroa
lusitana em declarar guerra contra os índios dos Autos da devassa... atende, em última instância, a uma determinação
pessoal de D. João V, com vistas a dificultar a remessa ilegal de drogas de
sertão e principalmente de ouro.
Conclusão
O insistente
foco dado á região do rio Madeira – que já se nota no próprio título do
processo contra os Mura e as nações inominadas do Tocantins – reflete, na
verdade, parte das opiniões que formam o universo dos pareceres dos membros da
Junta das Missões. Assim são a denúncia inicial do jesuíta José de Souza – a
favor da guerra contra os Mura, mas ainda cauteloso quanto ao ataque contra os
índios do Tocantins – e as avaliações do carmelita Victoriano Pimentel.
As nações
do rio Tocantins, “sem nome próprio” (CEDEAM, 1986, p. 121), ficam mesmo sem
perspectiva de qualquer punição por parte do poder administrativo, atendendo a
uma estratégia real de diminuir o fluxo do contrabando de minérios e produtos
agrícolas naquela região. Já o índio Mura – pelo fato de ser bravo, “de corso,
sem domicílio [e penetrar] os sertões de rio a rio” (CEDEAM, 1986, p. 121) – passa a ser o grande e único vilão de todo o
processo jurídico movido naquelas circunstâncias, apesar das determinações
régias em contrário.
Dos sete membros da Junta das
Missões, que emitiram pareceres nos Autos
da devassa..., cinco acusam o padre José de Souza – antigo inimigo dos
índios Manao, cuja redução, por meio de guerra justa, teve a participação do
referido jesuíta – “de agir em causa própria, já que a missão [jesuíta] tinha
interesses no cacau do rio Madeira. Somando-se ainda o fato de ser o mesmo Juiz
da citada junta, contrariando os preceitos mais basais do direito canônico”
(ATHILA, 1998, p. 67).
Mais que
isso: percebe-se uma configuração contenciosa entre os missionários das Ordens
que compunham a Junta das Missões. Se, por um lado, jesuítas e carmelitas votam
a favor da guerra contra os índios, por outro, mercedários e carmelitas são
contrários a tal determinação – situação esclarecedora acerca da disputa entre
eles: uns tentando ampliar sua já vasta área de influência, outros denunciando
as práticas comerciais ilícitas e desumanas dos inacianos, em relação aos
índios da Amazônia.
Em Muhuraida, apesar de não ocorrer uma
disputa explícita entre os missionários das ordens religiosas citadas no
decorrer do poema – diferentemente do que se apresenta nos Autos da devassa... –, é por meio do frei carmelita José de Santa
Tereza Neves que se cumpre o ritual do batismo das vinte crianças muras, que
encerra maravilhosamente o poema amazônico. Em nota, Henrique João Wilkens
confirma a atuação do dito frei que, no dia 6 de junho de 1785, “administrou o
sagrado batismo” (WILKENS, 1993, p. 169) das referidas crianças. Além disso, no
canto II do poema, o autor faz questão de mencionar as tentativas frustradas
dos missionários na tarefa de redução dos Mura, dentre eles os da própria Ordem
dos carmelitas:
Não só os jesuítas, que no rio
Madeira tinham missões até o ano de 1756; mas ainda os carmelitas e mercedários
intentaram, por algumas vezes, intimando aos Mura, por intérpretes, as verdades
de nossa santa fé, reduzi-los e agregá-los ao grêmio da Igreja, buscando-os nos
bosques, mas sempre foi frustrada esta diligência (CEDEAM, 1986, p. 113).
Se é
verdade que não há disputa aberta entre os missionários no poema de Wilkens, é verdade
também que vem a calhar o fato de não ter sido um frei jesuíta o administrador
do batismo dos pequenos muras. Essa situação vai ao encontro dos objetivos geoestratégicos
do autor de Muhuraida, como ativo
participante das comissões de demarcação territorial na Amazônia, bem como do
desejo pombalino de combate direto contra os muitos poderes da Companhia de
Jesus, que ultrapassava a seara espiritual no Brasil. Sendo assim, os Autos da devassa contra os índios Mura do
rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739) e Muhuraida – mesmo sendo obras distantes entre si por quase meio
século – afinam-se no questionamento ao poderio jesuíta, além de ajudarem e
construir e fixar uma imagem demoníaca do índio Mura.
Referências Bibliográficas
[1] ATHILA,
Adriana Romano. Índios de verdade: territorialidade, história e diferença entre
os Mura da Amazônia Meridional. Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais/UFRJ, 1988 (Dissertação de Mestrado).
[2] BENCHIMOL,
Samuel. Introducción a los “Autos da Devassa” de los indios mura (1738). CAMACHO,
Roberto Pineda, ANGEL, Beatriz Alzate (comps.). Los meandros de la historia em la
Amazonia. Quito: Abya-Yala; Roma: MLAL, 1990, p. 215-66.
[3] CEDEAM.
Autos da devassa contra os indios Mura do rio Madeira e naçoes do rio Tocantins
(1738-1739). Manaus: Universidade do Amazonas; Brasília: INL, 1986.
[4] ILUSTRAÇÃO
necessária e interessante relative ao gentio da nação Mura em 1826... e Observações
adicionais à Ilustração necessária e interessante relative ao gentio da nação
Mura. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, s.d. (Manuscrito anônimo).
[5] NOTÍCIAS
da voluntária redução de paz e amizade da feroz nação do gentio Mura nos anos
de 1784, 1785 e 1786. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
tomo XXXVI, 1ª parte, 1848, p. 323-92.
[6] AMOROSO,
Marta Rosa, FARAGE, Nãdia (orgs.). Relatos da fronteira amazônica: Alexandre Rodrigues
Ferreira e Henrique João Wilckens. São Paulo: USP/NHII; FAPESP, 1994.
[7] WILKENS,
Henrique João. Muhuraida ou o triunfo da fé... Manaus: Biblioteca Nacional/UFAM/Governo
do Estado do Amazonas, 1993.
_________________________
*Prof. Dr. Yurgel Caldas é titular da Universidade Fedefral do Amapá e escreveu este artigo para o XI Congresso Internacional da ABRALIC - Tessituras, Interações, Convergências, que ocorreu em São Paulo, de 13 a 17 de julho de 2008 na USP – São Paulo, Brasil.
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