por Eduardo Protázio
A caminho da Biblioteca pública, ainda na parada de ônibus, sob um sol de rachar a cuca, percebi que algo não andava bem. Para além do calor e o desconforto em suar desenfreadamente, assim melando e pregando o tecido da roupa na pele - o que seria normal, ou não, vide o já aparecimento do famoso “inverno amazônico” amenizando as temperaturas equatoriais -, algo estava distinto.
Outras sete, ou oito pessoas aguardavam seu transporte. Os borracheiros trabalhavam comumente à ilharga da via. Talvez a apreensão por carregar na bolsa um computador portátil e o temor do surrupio, já que assalto pras bandas dali têm sido constantes. Mas ainda não era isso. O tempo passa lento, arrastado. O sol e o calor certamente atrasam o relógio e a gente pena ainda mais. A espera do Tamoios, em pé, notei que havia uma formiga em mim. Exatamente. Uma formiga, dessas meio engrandecidas, grande o bastante para os parâmetros formigueiros, própria da família Formicidae e vinda do não-tão-distante reino Animália, e pertencente à ordem Hymenoptera.
Era isso que tirava a naturalidade do espaço-tempo. Mas sim, como pudera?!, justo em mim!? Não pude vê-la na hora, mas a senti. Caminhava com suas seis perninhas. Subia, descia. Prum lado, pra outro. Em meu ombro. Não, no braço. Pra lá e pra cá passeava o inóspito inseto. Noutro instante, após sacudir a camisa para enxotá-la de mim, a vi caminhando no interior da roupa, trepada em busca de uma saída, eu acho. Foi então que, para o meu espanto maior: tratava-se de uma cortadeira. Meio avermelhada, meio marrom. Agora não lembro bem, mas se confundia com o tom têxtil. No momento imediato tentei agarrá-la de maneira sutil, com um par de dedos no intuito de apenas lançá-la ao vento. Imaginei ter feito isso e logrado ao obejtivo.
Depois de um tempo breve subo no coletivo. Meio estabanado com um monte de bregueço nas mãos: bolsa, carteira, telefone móvel. Pago a passagem, ultrapasso a roleta, busco um bom lugar longe do sol. Troco de assento e me aquieto. Lendo Padura, curtos minutos depois, sinto a pequenina rival novamente caminhar em minhas entranhas. Passara pelo sovaco até se agarrar no tecido da vestimenta outra vez. Parece que sabia ter sido localizada. Sinto o seu passear e num instante prendo-a entre indicador e polegar.
Ainda em misericórdia, poupo a sua vida como antes. Solto-a e espano a camiseta com fervor. Uma simpática senhora, da outra fileira de assentos, me olha espantada. Devo ter estremecido a calmaria daquela viagem, mas o tremor da situação me exigia ações bruscas e, uma tensão maior me fazia voltar a suar descompassadamente. Não sentindo mais o pequeno ser, pensei: “deve ter saído, caído, morrido… sei lá”. Segui a leitura com Leonardo. Viagem que segue.
Em meio ao engarrafamento, na esquina das Mercês com a Almirante Barroso, o sol passara pro meu lado. Sentia-me incomodado. Tráfego parado. Aquele canto é fogo depois de uma da tarde. Foi aí que a miserável, brevemente esquecida, tornou a se mostrar. O trânsito anda. Para novamente. “Olha a água, caralho!!!!”, gritam da rua. Um vendedor pede pra subir. O motora nega. Ela me morde. Tensão. “Bora, água e refri!! Água e refri!! Água e refri!!”. Bem nas costas. Um pouco abaixo do ombro direito. Sujeitinha covarde. Indivíduazinha mais sem escrúpulos. Poderia, a partir daí, a minha vida entrar em um lento processo terminal. Seria um tiro letal? Lógico, com uma abocanhada do mal dessas.
Começo, então, inevitavelmente, a travar uma batalha mortal por minha vida e a tranquilidade que sonhara em ter numa simples ida à biblioteca. Era preciso arrancar aquelas duas pequena garras de minha carne rapidamente, antes que a gangrena chegasse. Senti a sua mordida voraz e de pronto a agarrei com força, muita força, que pode-se ouvir a quilômetros longínquos (só eu escutei, na verdade) o estalar de sua estrutura artrópode. Não tive dó, nem piedade. Esqueci da compaixão e sequer me passou pela cabeça o ditame do quinto mandamento de que fala um manuscrito religioso. Foi com tudo.
Durante uns seis, sete segundos a amassei, para vingar o que acabara de fazer. Atacar alguém por trás não é legal, não é leal e diz muito sobre o caráter de alguém. Logo vi que não caberíamos mais os dois no mundo. “Ou ela, ou eu”, pensava. Esmaguei-a rapidamente. Sacudi a roupa para lançá-la à própria sorte e cair no chão quente e metálico da condução. Pude, assim, trazer um pouco de paz à tensão que impunha o longo momento de convívio com a minúscula adversária.
Um tempo depois, ainda cogitando ser possível a vida da formiga não ter sido abalada fatalmente, pensava no que acabara de acometer: um homicídio violento a um ser que, de conjunto, nos faz bem. Mas não ali. A situação a qual me sujeitara. Naquele momento não havia como pensar na vida do planeta, no ecossistema e o equilíbrio que cada ser, mesmo os mais pequenos, produzem à natureza. Não posso descrever agora em que as formigas nos são úteis ou aliadas, mas, “aliás, nós podemos dizer que são nossas amigas.”, dizia um artigo da Fiocruz.
A saga rumo à Biblioteca seguia e um leve incômodo com o pós-mordida também. Uma coceira suave. Logo imaginava o pior: “E se aquela maldita me infectar?! Posso morrer aqui… mas assim?!, por uma mísera formiga!?. Afinal, já ouvi falar de graves infecções causadas por picada de formiga… umas que levaram até a internações hospitalares”.
Desci do ônibus e no passo apressado, quase corria para chegar o quanto antes ao banheiro da Biblioteca. Lá eu poderia tirar a camiseta e finalmente liquidar a vil formiga. Isso se a desgraçada se atrevesse a seguir em vida. Se por acaso ainda estivesse presa à roupa, e pior, viva e relutante contra seu fim, trataria de jogá-la dentro do vaso sanitário, esperaria um tempo para vê-la penar, se afogando e tentando alcançar a beira da privada para fugir da água. Assim que se aproximasse de sua esperança desesperadora, apertaria o gatilho e a água em forma de uma mini tsunami trataria de levá-la ao seu fim.
Que se vá e morra no inferno das formigas, amparada pela rainha-de-fogo, uma pixixica maior. Agonize eternamente pelo mal que fez em vida na Terra. Mas, infelizmente, para sanar a minha perversa gana, isto não procedeu. Tirei a camisa. Avistei com atenção e cuidado. Não encontrei a dita. Abanei o vestido com força. Queria ter a certeza de não mais ver o sórdido inseto novamente. Procurei em outras partes do traje. Calça, sapato. Nada. Vesti e arrumei-me às vestes. Tornei-me calmo. Busquei um assento para me acomodar e seguir com Padura. O pior havia passado. Era só uma formiga.
***
Eduardo Protázio escreve crônicas e poesias. É estudante de letras e dirigente do PSOL/PA.
Nenhum comentário:
Postar um comentário