sexta-feira, 29 de maio de 2015

Os desafios depois da Marcha da Maconha em Belém e no Pará

Centenas de pessoas ocuparam as ruas do centro de Belém no último domingo, dia 17, para participar da terceira edição da Marcha da Maconha.



por Júlio Miragaia

Os manifestantes se concentraram na Praça da República, percorreram as ruas do comércio da capital paraense e terminaram o trajeto da passeata em frente ao complexo do Ver o Peso, onde está sendo realizada a Ocupação Solar das Artes. 

Com cartazes, faixas, palavras de ordem, canções e outras formas de expressão, os participantes pediam uma nova política de drogas, o fim do tráfico, do assassinato da população negra e pobre das periferias e o direito ao cultivo e a utilização da maconha para fins medicinais e recreativos.  

Durante o trajeto, a Marcha passou ainda pela Praça Waldemar Henrique, local onde é realizado no mesmo período, todos os anos, o Tributo a Bob Marley, evento organizado por vários grupos e coletivos do movimento reggae. 

Balanços e perspectivas

De acordo com os membros da comissão organizadora, o balanço da realização dessa edição da Marcha da Maconha é positivo. Marcus Benedito, servidor da Sespa e integrante da coletivo que impulsionou a ação, avalia que a marcha de Belém foi uma das mais politizadas do país. “Política no sentido de dar nome aos bois e dizer que a atual política de drogas mata pobre todo dia”, dispara o ativista.

“Fizemos duas marchas antes dessa”, explica Benedito. Uma em 2011, durante o Fórum Social Mundial de Belém e outra em 2012, intitulada Marcha da Liberdade”, explica. Devido a ação no STF, questionando a constitucionalidade da Marcha, os grupos que a organizavam preferiram mudar o nome da atividade para não correr riscos. Porém, a inciativa em seu conteúdo utilizava as mesmas palavras de ordem e cartazes da luta pela legalização. 

A maioria dos organizadores faz parte de grupos que debatem as drogas ou os direitos humanos, são estudantes da UFPA, UEPA, militantes de movimentos sociais, de partidos de esquerda e anarquistas. A expectativa dos ativistas que deram continuidade ao evento, organizado pela última vez há três anos atrás, é manter um calendário anual de atividades, ingressar na Frente Paraense de Drogas e Direitos Humanos e levar de fato  o debate para a sociedade.

A Psicóloga Flávia Danielle, que também está a frente do movimento expressa que a marcha é só um momento de visibilidade. “Nossa meta é aumentar o público quantitativa e qualitativamente para os próximos anos”, conta. “Queremos também levar esse debate para os bairros. Tivemos o apoio de entidades significativas que lutam pelos Direitos Humanos e queremos ampliar isso”, prossegue Flávia. 

“Esperamos levar esse debate para a sociedade e fazer frente a essa política de drogas que extermina a juventude negra e periférica, lutando por um dos seus principais pilares que é uma nova política de drogas”, expõe a psicóloga.

Desafios para além da Marcha: a realidade da política de drogas e o sistema prisional
Os desafios dos ativistas e da vanguarda organizadora da Marcha da Maconha, para além de estabelecer um caráter permanente para esse que é um debate que deve ser encarado com seriedade na sociedade, é trazer a tona os efeitos colaterais da atual política de drogas no país e como a mesma se materializa no Estado do Pará.

A Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará (Susipe) divulga mensalmente relatório que demonstra em números o perfil e os principais dados da população carcerária atual. No último relatório, do mês de março, é informado pela instituição que o tráfico de entorpecentes é uma das principais causas da superlotação do sistema. Até a publicação do último relatório, foi registrado que um total de 3.716 pessoas estão presas, seja em regime fechado ou regime aberto, tipificados pelo crime de tráfico de entorpecentes no Estado. Desses, 3.181 são homens e 535 são mulheres. 

Em relação ao total da população carcerária, esse índice é muito maior, proporcionalmente, em detentas do sexo feminino do que do sexo masculino. A população carcerária total da Susipe é de 12.872 presos. São 12.106 homens e 766 mulheres. Ou seja, de um total de 766 internas, 535 estão presas por tráfico. É mais de 60% da população carcerária do sexo feminino.

Outro dado revelador fornecido pela Susipe é a idade e a cor dos que cumprem pena. Tem entre 18 e 29 anos, 8.411 presos, o que equivale a 65,68% dos internos. São negros e pardos 10.694 presos, ou seja, 84,14% do toal de internos da superintendência.  

Fazer com que esses dados sejam elementos de reflexão e ação para uma mudança efetiva é parte do enorme desafio não só para os participantes da Marcha da Maconha, mas para o conjunto da sociedade paraense. Ainda de acordo com dados do levantamento mensal da Susipe, o Pará tem a 9º maior população carcerária do país. Além disso, tem sido cada vez mais uma constante as rebeliões de um sistema que está mais do que falido, não ressocializa seus apenados e a atual política de drogas contrbui expressivamente para o inchaço dos presídios e o avanço da barbárie.  

O tratamento do usuário pelo Estado


Sobre o tratamento do usuário, o papel do estado também tem ido na contra mão da forma como o mundo tem visto a dependência química. Flávia explica que esse é um assunto que está sendo muito debatido internacionalmente.

“Vemos vários países alterando suas leis tanto no sentido de descriminalizar o usuário como no sentido de legalizar o comércio, uso e cultivo da Maconha. No Brasil, temos uma lei de drogas (11343/06) que por muitos é vista como um avanço, já que separa o que seria o usuário de drogas, não visto mais como criminoso, do dito traficante”, esclarece. A psicóloga, porém, assinala que essa é uma lei que gera dúvidas sempre, pois abre brecha para múltiplas interpretações.

“Ela (a lei) não amarrou o que seria considerado um usuário e o que seria um traficante, ficando a critério do juiz ou outro agente da lei definir isso se baseando em condições sociais, contexto e motivações e o resultado disso foi o aumento considerável do número de prisões tipificadas como tráfico”, explica.

Política de saúde mental


A política de saúde mental é também um problema. Flávia conta que a quantidade de Centros de Atenção Psicossocial de Ácool e outras Drogas (Caps ad) não é suficiente para atender a demanda populacional do Estado. “Não dá para dizer que existe uma Rede de Apoio em Saúde (RAS). Não por responsabilidade dos trabalhadores que vivem as mazelas do descaso, mas por uma falta de gestão mesmo”, desabafa. 

Nesse cenário, vemos a multiplicação das comunidades terapêuticas que, administradas por instituições religiosas, recebem vultuosos investimentos do Ministério da Saúde, mesmo não atendendo as especificações técnicas, estruturais, profissionais e, principalmente, de interesse na saúde das pessoas que possuem algum problema em virtude do uso de substâncias seja lícitas ou ilícitas.

As comunidades terapêuticas são um mercado altamente lucrativo para essas indústrias religiosas. “O presidente do CONED-PA é dono e defende piamente as comunidades terapêuticas, ludibriando e sem se preocupar com a saúde de pessoas que se tornam dependentes químicas por diferentes motivos, sendo a droga mais um subterfúgio”, diz Flávia. 

“Nós defendemos o investimento em saúde substitutiva, implantação de uma RAS eficiente e pela adoção da Redução de Danos, pois essa é uma política que respeita a pessoa e trabalha com ela e por ela”, explica a organizadora da Marcha. 

Para Marcus Benedito, o tratamento diferenciado é dado também pela questão de classe. “O tratamento difere não pela droga, mas pela cor de pele e classe social. Para negros e pobres é tiro, porrada e bomba. Para jovens de classe média é psicólogo e advogado”, comenta.

Violência e tráfico no Pará

Marcus também comenta sobre a recente onda de violência na capital paraense que culminou na chacina de dezenas de pessoas na primeira senana de novembro do ano passado. “A chacina de novembro, na verdade, foi uma extrapolação do que ocorre todo dia. Em Belém, Marabá, Abaetetuba ou Rondon do Pará, locais distantes uns dos outros, mas onde já ocorreram chacinas e, segundo o Relatório da CPI da Assembleia Legislativa das Milícias e Grupos de Extermínio, "A cultura organizacional da corporação Polícia Militar favorece a formação no interior de seus batalhões de grupos e organizações criminosas". 

De fato, a guerra as drogas virou uma verdadeira guerra aos pobres, negros e favelados. Todos os dias os jornais noticiam de quase dezenas de pessoas mortas e presas. Os dados da Susipe, acima, materializam precisamente o significado dessa guerra. 

Na verdade é a população, principalmente a da periferia, a verdadeira vítima dessa guerra entre milicianos e traficantes. “Por isso da necessidade de se legalizar as drogas. Todas elas. Para acabar com essa guerra, dar o direito a quem quer plantar, regulamentar, porque tem que ter qualidade e tratar quem busque tratamento, como o SUS já busca desenvolver através dos CAPS Ads”, explica Marcus.

Considerações para as próximas Marchas e para os próximos tempos


O que foi tentado ilustrar nesse texto são ainda elementos incipientes, mas que objetificam provocar um debate. É preciso seguir, fortalecer e impulsionar a Marcha da Maconha em Belém. Os inúmeros problemas apresentados, como consequência da política de drogas, demonstra que esse é um assunto que deve chegar de forma qualificada para o conjunto da sociedade e que não se resolve com a atual política de encarceramento e criminalização da população pobre.

Avançar, para além da Marcha, como bem propõe seus organizadores na edição desse ano, e unificar essa luta com as demais pautas dos movimentos sociais é um desafio que deve ser uma consequência sob responsabilidade não apenas de uma ou outra pessoa, mas do milhões de habitantes da Região Mteropolitana de Belém e de todos os municípios do Estado. 

Finalizo essa pequena contribuição parabenizando os que resistem e fizeram valer a edição desse ano e concluindo que todas e todos devemos dar nossa colaboração para que a legalização aconteça. Fazer uma Marcha da Maconha em Belém,parecia algo distante e utópico há um tempo atrás. Hoje, foi possível colocar cerca de 150 pessoas nas ruas. Como diria Eduardo Galeano, a utopia vai servindo para que caminhemos. E quando vemos, não estamos mais no mesmo lugar.

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