quarta-feira, 5 de julho de 2017

Altamira, 20h43

31/05/2017

por Marcus Benedito

No Bar do Pedro. Rolando o DVD do Samba Social Clube. Ensaiei meu samba o ano inteiro. Música linda de Benito Di Paula. Um  grupo de barbudos representando. Som que remete a muita coisa boa. Momentos únicos. Não tem como citar um sequer, porque muitos. Me foge à lembrança, como já cantou outro poeta. Lugar relativamente povoado. Espaço alternativo. Muito gostoso de estar. Com pessoas nunca antes vistas. Numa cidade nunca antes vista e caminhada. O som e as cervejas correntes te trazem pra perto. Gostoso para beber o gelado chopp artesanal do Pedro. 

Segundo dia que estou na cidade. Que bom que não tardei a conhecer aqui. Chama atenção um cartaz prestimosamente emoldurado do encontro dos Povos do Xingu, realizado entre os dias 19 e 23 de maio (o cartaz não diz. Vi depois que foi em 2008) em Altamira. Organizado pelo Movimento Xingu Vivo para Sempre, resposta às agressões promovidas pelo governo Dilma (PT-PMDB) e empreiteiras, no que ficou materializado como um dos maiores atentados contra o meio ambiente e os povos da Amazônia: Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira, no coração do Xingu. Uma monstruosidade que só a sanha e a corrupção seriam capazes de planejar e executar.

Mas bonitamente ornamentado e frequentado, o Bar do Pedro não é o centro. O centro é o continente, claro, com seus belos e feios conteúdos: Altamira. Altamira é uma cidade distinta de todos os outros lugares que vi e sobre-vivi. Altamira é uma cidade surgida de um monte. Lugar pensado para que nele pudesse ser feita uma boa fortificação (ou ponto de mira apenas). Uma visão privilegiada que pudesse dar precisão às miras do canhão que levaria a pique qualquer tentativa de invasão desta vasta e bela e rica região por qualquer atrevido corsário ou estrangeiro no período do Grão Pará e Maranhão. Tudo ali. Uma mira alta. Só que o jogo nunca inverteu e o canhão continua estourando do lado da maioria do povo. Os canhões da destruição da maquinaria pesada, com o exército de 30 mil homens, 7 vezes e meia a mais do que foi empregado pelos faraós para a construção há milênios, das curiosas pirâmides do Egito. Ou mais impressionantes ainda, as que são encontradas espalhadas pela Amazônia e toda a América pré-colombiana.

Altamira, embaixo da mira, é uma cidade de gente fechada. Os canhões da Norte Energia S/A, conglomerado de megas empreiteiras de propriedade dos principais indiciados e presos pela Lava Jato, produziram e deixam marcas muito marcantes, porque profundas. Chagas fortes em tudo que habita e ama por essas paragens. Mais de R$ 30 bilhões de reais que nada produziram senão açoite e escárnio.

Como em tudo, não é de cara que se conhecem as coisas e as pessoas aqui. Altamira é muita superficialidade. Ainda que a morte seja berrante. Recentemente reconhecida como a cidade mais violenta do país. Onde mais se mata e morre. Não era por menos. Só o povo que vive e jazz aqui sabem a dor e a delícia de ver o que era doce desaparecer. Adeus mais lindo estuário e berçário das dezenas de espécies de peixes que tinha ali. Daqui da frente dava pra ver a Ilha dos Papagaios. Que literalmente pegou fogo. Nem James Cameron, que também esteve aqui, poderia conceber cenas mais cruéis e indecentes. Adeus Volta Grande. O rio, que tinha cara e gosto de guaraná Xingu, agora está com os olhos opacos, a cara própria e, portanto, também morada de peixe morto. Quem depende do peixe adoece e morre igualmente. Gente que engole choro. Ouve-se gritos de indignação, uhus, tormento, ilusão, tragédia.

Da orla a foto parece linda. Mas o rio Xingu é um rio que padece, propriamente agoniza. Está parado, envenenado, assassinado. Não se poderia esperar outro resultado para tamanho assombro. Empreendimento que fez esse povo experienciar as formas mais sanguinárias e primitivas que o capitalismo e a corrupção dos governos se utiliza para exterminar os povos. Os movimentos sociais, os ambientalistas, os atores Sigourney Weaver e Leonardo Di Caprio, o cantor Sting, mais do que eles: Raoni, Megaron, Antônia Melo, a guerreira Tuíra, já haviam denunciado aos quatros cantos do mundo a hecatombe que seria Belo Monstro sobre a vida de tudo que se meche ou não, respira ou não, nessa mágica região.

No DVD, Tereza Cristina e o grupo Semente (não deu tempo de ler o resto do nome), interpreta aquela que diz que vai manter a tradição. Vai meu bloco, tristeza e pé no chão. Recuso-me a pensar que esse será de fato o fim do Xingu e tudo que depende desse ecossistema. Recuso-me a pensar que tudo será dores. É preciso falar de flores.  E depois dela Chico Buarque de Holanda reforça que Vai Passar. Que embora a região e pátria estejam, desde os tempos do invasor Cabral, a serem subtraídas, que teremos um dia, alegria afinal.

Mas como essa tal felicidade, se o rio está morto? Se parentes morrem todo dia? Sensação de que o que sobra é uma avenida na beira do rio que foi enforcado. Lugar por onde passou a curumim e bailou um pajé, de sambas imortais, cantados pelos índios no desfile da Imperatriz Leopoldinense no Carnaval deste ano, povo que viveu milênios até ter que presenciar essa ofegante epidemia chamada Belo Monte. O estandarte do Sanatório Geral vai passar? Espero que sim. Embora tenhamos constatado que essas pessoas estejam doentes do corpo, da mente e da alma.


A região que ouviu a promessa de que tudo seria festa, obras, melhorias, empregos, vida boa, em suma, o paraíso, não sabia que em vida seus povos conheceriam a verdadeira face do terrorismo de estado. O mesmo que gera fel, inferno, invade favelas, expulsa quilombolas, mata sem terras e sem tetos, promove dor, sofrimento, fome miséria, morte, inferno. Mas a revanche se opera. 

Queremos o Rio Xingu Vivo para Sempre! Alcione se despede: foi o fim, o sonho bonito de paz. As jornadas de lutas do primeiro semestre deste ano nos sugere que não. Não tocou, mas vale lembrar Cazuza: a história não acabou e ainda estão rolando os dados.

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