quinta-feira, 28 de março de 2019

Como a cultura pode legitimar a violência do Estado

Por Raphael Castro*
jornalismoraphael@gmail.com




Desde o dia 25 de março de 2019, as tropas da Força Nacional estão atuando na Região Metropolitana de Belém e devem ficar por aqui por pelo menos três meses. Este é um fato que devemos acompanhar minunciosamente nas próximas semanas. Mas quero aqui neste texto propor uma reflexão sobre o significado contido na foto da Secretária de Cultura do Pará, Ursula Vidal, com militares que vão comandar a operação no estado.

Em 1988, o, então governador e pai do atual governador do Pará, Jader Barbalho, criava a Patrulha Tática Metropolitana, PATAM, um braço mais forte da Polícia Militar pra atuar na segurança pública do estado. Quem viveu aquela época sabe falar melhor do que ninguém como era o trabalho da PATAM que violentava, matava e até queimava pobres, trabalhadores, estudantes. O jornalista Carlos Mendes conta, no blog Ver-o-Fato, sobre sua experiência no extinto Folha do Norte. Com a machete "FOI PÁ, PÁ TAM", uma matéria daquele jornal denunciava um grupo de extermínio liderado por policiais da PATAM que haviam cometido uma chacina, cuja repercussão levaria ao fim da tropa de elite da Polícia Militar do Barbalho. "Cadáveres apareciam boiando no rio Guamá e Baía de Guajará, mas os jornais “A Província do Pará”, “Diário do Pará” e “O Liberal” davam os títulos convencionais, do tipo “corpo é em encontrado no rio”" relata Mendes.

No dia 11 de abril de 2018, enquanto o estado do Rio de Janeiro estava sob intervenção federal militar, a deputada federal e mãe do atual governador do Pará, Elcione Barbalho (MDB) e o deputado federal e pai do atual Secretário de Justiça e Direitos Humanos do Pará, Éder Mauro (PSD), solicitaram formalmente ao então presidente Michel Temer intervenção federal na segurança pública do estado do Pará. No dia seguinte, o Diário do Pará, jornal que pertence à família do governador Helder Barbalho, estampava em sua capa a consigna “INTERVENÇÃO FEDERAL JÁ!”.

No dia 2 de janeiro de 2019, Helder Barbalho, em seu primeiro ato como governador, solicita ao Ministro Sérgio Moro apoio das tropas da Força Nacional no Pará. Acompanhado a isso, Helder também anunciou o aumento em 50% de viaturas da PM e quase 2 mil policiais a mais. O governador chegou ainda a cogitar a adoção do modelo de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) que foi implantando no Rio de Janeiro.  Tudo isso para agradar os setores do governo que mais estão preocupados com a “segurança” pública, como o deputado Éder Mauro e seu filho Hugo Sarmanho Barra, presidente do PSL no Pará e Secretário de Justiça e Direitos Humanos.

No dia 25 de março de 2019, mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro orientou a comemoração do golpe militar de 1964, a Secretária de Cultura do Estado, Ursula Vidal, postou uma foto com as comandantes da operação da Força Nacional no Pará, saudando a chegada da tropa federal militar enviada pelo ministro Sérgio Moro, do Governo Bolsonaro.

Por que questionar a Força Nacional no Pará?

No mês passado, eu estava indo de moto-taxi acompanhar a apuração do desfile das escolas de samba de Belém, quando, no cruzamento da José Bonifácio com a Mundurucus, três policiais militares nos abordaram com armas em punho apontadas pra mim e para o mototaxista. Na teoria, aqueles policiais estavam ali só pra vistoriar e garantir a paz. Vale dizer que a abordagem que eu sofri naquela noite não é tão comum comigo, mas é corriqueira, e é muito mais violenta, com jovens da minha idade que têm a pele mais escura que a minha e estão excluídos dos ambientes políticos, acadêmicos e profissionais nos quais eu estou.

Em setembro do ano passado, com mais de 1.300 mandados de busca de apreensão, a operação Cristo Redentor invadiu as casas das mais de 1.300 famílias da ocupação urbana Pouso do Aracanga, em Ananindeua. É como se todas as famílias daquele lugar tivessem associação com o tráfico. Uma mega operação com Batalhão de Polícia de Choque, Batalhão de Polícia Tática, Regime de Polícia Montada, Companhia Independente de Operações Especiais e Companhia Independente de Policiamento com Cães e Grupamento de Pronto Emprego (GPE) tocou o terror desde a madrugada agredindo homens, mulheres, jovens, crianças e idosos. Poucos dias depois, eu fui àquela ocupação e era impressionante o número de pessoas com hematomas e com relatos macabros da ação da polícia.

É sobre esse modelo de segurança que estamos falando. Um modelo em que se seleciona um determinado perfil, baseado em estereótipos, que é considerado de potencial criminoso e, portanto, inimigo a ser aniquilado. É a polícia que primeiro atira, depois pergunta. E com todo esse enorme aparato de repressão militar que o estado do Pará já tem, por que recorrer a mais uma força e dessa vez federal? Se o estado não consegue resolver o problema com seu efetivo de polícias e guardas municipais, por que uma irrisória tropa de 200 militares iria resolver?

A Força Nacional foi convocada pra cá sem que o governo tenha dado as devidas explicações. Com base em que o Governo do Estado garante que isso vai ter um efeito positivo? Os especialistas em segurança pública, que se dedicam a estudar essa problemática, pensam o que a respeito? O que garante ao governo que essa medida não vai aumentar o ciclo < mata policial - mata favelados em série >  que vimos em escala assustadora por aqui no ano passado?

O relatório do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017, ao apontar que, em 2015, o investimento de R$ 160 milhões na Força Nacional correspondeu a 43% do orçamento total do Fundo Nacional de Segurança Pública, questiona "qual a real efetividade dessa mobilização de recursos? Há alternativas mais efetivas e duradouras para o uso desses R$ 162 milhões?". Mesmo sem responder a essas questões, de lá pra cá, os governos Dilma, Temer e agora Bolsonaro seguem apostando na FN como principal estratégia de segurança pública como política nacional. E o atual Governo Federal, tão cedo já tão desgastado, precisa performar soluções para problemáticas latentes, como a segurança pública.

A operação da Força Nacional por aqui pretende implantar “territórios de pacificação” em áreas mais críticas da Região Metropolitana de Belém, nesta primeira experiência. Que pacificação é essa? A secretária de cultura do Pará, quando ainda estava no PSOL, participou do lançamento em Belém do livro “UPP a redução da favela a três letras” de Marielle Franco. Que pacificação é essa que vem inspirada no modelo de “pacificação” que Marielle tanto denunciou?

“Negro também é gente?” pergunta Bruna Silva, mãe de Marcus Vinicius, em entrevista à reportagem “A mãe de um sem direito à vida” do Projeto Colabora. A reportagem, que faz parte de uma série sobre brasileiros sem direitos básicos constitucionais, nos dá mais um panorama do modelo de segurança pública militarizado que ceifou a vida de um garoto que trajava uniforme escolar no Rio de Janeiro:

“Na cerimônia em que celebrou o encerramento da intervenção [federal], em 27 de dezembro do ano passado, o general interventor Walter Souza Braga Netto e o secretário de Segurança Pública fluminense, general Richard Fernandez Nunes, receberam uma medalha cada um e se cumprimentaram pelo trabalho bem feito. Braga Netto disse que a intervenção “atingiu todos os objetivos propostos” e se gabou: “cumprimos a missão”. Tanta comemoração dizia respeito à diminuição nas ocorrências de roubo de carga, que, com a intervenção, diminuíram 14% em relação ao mesmo período do ano anterior, conforme o Observatório da Intervenção, coordenado pela faculdade Cândido Mendes. No que dizia respeito ao direito à vida, não havia tanto para celebrar: um recuo de 5,5% nos homicídios, acompanhado de um aumento de 40% no número de mortos pela polícia.”

Se não temos evidências da eficácia desse tipo de operação e ainda temos péssimos exemplos dessa política de polícia “pacificadora”, se somos um país que ainda não acertou as as contas com o passado sangrento da ditadura militar e já elegeu “democraticamente” um presidente que venera o torturador Ustra, se estamos em um estado que ainda não respondeu pelas chacinas executadas por policiais militares de grupos de extermínio, por quê receber a Força Nacional com tanto entusiasmo?

E o que a pasta de cultura do goveno tem a ver com isso?

Em fevereiro deste ano, eu publiquei um texto que falava sobre como o espetáculo do Rancho,no carnaval 2019, escondia a alarmante realidade atual da população de Barcarena. É sobre isso que quero falar aqui. O papel da cultura para disfarçar e até legitimar uma realidade cruel.

Abdias do Nascimento, no clássico “O Genocídio do Negro Brasileiro”, fala de como a cultura foi usada estratégicamente para executar o plano de genocídio das populações indígenas e descendentes de africanos. Enquanto se perseguia as rodas de samba, de capoeira e os cultos de Candomblé, também se sustentava a tese de “assimilação de culturas”, “mistura de culturas”. É daí que sai a máxima de “democracia racial”.

O mito da democracia racial persiste, assim como o genocídio do povo preto, que inclusive avança. É com esse pano de fundo “democrático” que tentam nos empurrar goela abaixo a ideia de que a militarização da segurança pública vai nos trazer a paz. A paz que a Secretária de Cultura diz entusiasmada que a Força Nacional vai implantar no Pará.

A paz?

“A paz é muito falsa. A paz é uma senhora. Que nunca olhou na minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. A paz é muito branca. A paz é pálida. A paz precisa de sangue.”
(Da Paz, Marcelino Freire)

A cultura pode e deve ser elemento de transformação e resistência, mas também pode ser usada para legitimar a violência e a carência de democracia. A cultura é um campo de disputa, onde quem exerce hegemonia é quem tem mais poder.

Por que a Secretária de Cultura faz questão de participar e divulgar um evento que não está ligado à sua pasta no governo? Isso diz muito sobre o papel estratégico que essa secretaria tem no Governo Helder. Enquanto o governo aplica com mão de ferro sua política de segurança pública militarizada, ele também está respaldado para dizer que está paralelamente aplicando políticas de cultura que amenizariam a violência inflamada pela operação.

No Instagram da secretária, fiz o seguinte comentário:

As tropas da Força Nacional chegam ao Pará seguindo uma agenda militarizada e genocida de segurança pública. Seguindo a mesma lógica de "pacificação"que sumiu com o Amarildo e matou o Marcus Vinicius. Política de um governo que condecora PM que mata em serviço, num país em que 76% das pessoas mortas em intervenções policiais são negras. É também a polícia que mais morre, tu sabes, e 56% desses mortos são negros,embora se tente florear representatividade nessa militarização. Do alto do teu prédio no centro da cidade, Ursula, e de dentro do condomínio de luxo do governador, pode parecer que essa militarização "pacificadora" tráz "políticas públicas de educação, cultura e geração de renda" pra ficar tudo bem. Aqui em baixo, a realidade é bem diferente, viu. Essa "paz" encomendada direto da força militar federal, neste momento do Brasil, que tu estás saudando, custa muito caro. Custa direitos e até vidas de gente preta, pobre, favelada e trabalhadora. A operação tá só começando, bora ver como serão os próximos dias. Será que a sra secretária de cultura, o secretário de segurança pública e o governador vão dormir tranquilos nas próximas noites? Será que as mães de meninos pretos das áreas da RMB que vão ser "territórios de pacificação" vão dormir tranquilas? Cuidado com as mãos que tu andas apertando, várias delas estão sujas de sangue de gente preta e pobre.

Eis que Ursula responde me convidando pra um concerto da Orquestra Sinfônica do Teatro da Paz. 


É um fato que ao assumir a secretaria de cultura, Ursula passa a ideia de renovação na gestão cultural do estado, que estava nas mãos do mesmo secretário há mais de 20 anos. Mas a questão é: enquanto se promovem bate-papo com a Secult, editais de ocupação de teatros, espetáculos populares, etc., quantas pessoas estão tendo direitos violados nas abordagens policiais sem que quase ninguém reflita sobre isso? Essa política “progressista” de cultura está chegando onde além dos grandes teatros? Porque as manifestações culturais do povo preto, os batuques, as batalhas de hip hop, continuam sendo criminalizados. Os jovens pixadores nas periferias continuam sendo violentados pela PM porque não se enquadram como "artistas grafiteiros" dignos de estamparem suas obras nos museus do estado. E ainda: em quem chega as políticas da Secult e em quem chega a violência policial? Quem são os paraenses que frequentam eventos como o que a secretária de cultura me convidou pra desviar o meu questionamento? Qual é, verdadeiramente, a diferença entre as gestões de políticas culturais nos governos tucanos e agora no Governo Barbalho? Não se trata de desmerecer a real importância da política cultural, mas sim de estar alerta para o quanto isso pode estar nos dividindo, nos iludindo, nos fragilizando e privilegiando alguns de nós.

O estado do Pará continua afundado numa crise social com altas taxas de homicídio que castiga a população mais pobre, com a saúde pública em frangalhos, com a educação abandonada, escolas públicas literalmente caindo aos pedaços, bioma amazônico paraense sendo destruído pelas multinacionais, populações tradicionais sendo castigadas por contaminação e pelo empobrecimento, lideranças de movimentos sociais sendo assassinadas. Como, no meio de todo esse caos, a solução que o governador Helder Barbalho apresenta é ensaiar a implantação de um modelo de segurança que já deu muito errado em outros lugares? E como a justificativa da Secretaria de Cultura, para defender a medida do governo, é apresentar sua agenda de eventos culturais?

Para acreditar que não tem problema mais militares nas periferias porque tem mais programação cultural promovida pelo governo, é preciso estar em um local muito privilegiado da sociedade. É não ter a menor noção de como é sentir na pele a ação da força militar nas periferias. Uma amiga (negra) me contava, ontem mesmo, que o irmão dela (negro), no bairro da Pedreira, foi revistado por homens da Força Nacional porque teria “olhado feio” para uma militar que estava na viatura. Se o gênero une Ursula àquelas mulheres da foto, a raça e a classe criam um enorme abismo entre a secretária e tantas policiais militares que morrem em serviço e também entre a secretária e as centenas de milhares de mães que enterram seus filhos assassinados pela PM; e as centenas de milhares de homens negros que morrem por conta dessa lógica de “segurança” pública. Esse abismo confere privilégio pra poder posar sorridente ao lado de duas policiais armadas pra guerra.

Ursula Vidal, que já foi de esquerda e empolgou boa parte da militância do PSOL – inclusive a mim – com sua candidatura ao Senado em 2018, agora usa o prestígio que conseguiu entre ativistas para dar um ar democrático e progressista a um governo comprometido com o genocídio do povo negro e pobre.

Quem acredita que a paz vem pelas mãos dos militares são os Bolsonaros, Witzel, Moro, Éder Mauro, Jader e Helder Barbalho. Quem comanda a pasta de Justiça e Direitos Humanos no Pará, que poderia assegurar a não violência da força policial militar, é do partido de Bolsonaro, partido de quem homenageia e emprega milicianos em seus gabinetes, do partido daquela figura desprezível que quebrou a placa de Marielle Franco. É no meio dessa gente que está, estrategicamente, a simpática secretária de cultura. Política de cultura não é benevolência, é obrigação do Estado! Nem pode servir pra “contrabalancear” a violência do braço militar desse Estado dito “democrático” e “de direito”. Não podemos nos enganar.

Do lado de cá, seguiremos lutando em defesa dos direitos humanos, denunciando o genocídio da juventude negra nas periferias e pautando a necessidade de uma verdadeira segurança pública que nos proteja e não nos ameace. E seguiremos levantando a bandeira da cultura, a cultura que nos liberta e não que nos anestesia. Vamos bater o pé sim! Não aceitaremos que a cultura sirva para legitimar uma agenda de morte.


*Raphael Castro é jornalista, midiativista e mestrando em Comunicação, Cultura e Amazônia.

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