A Campeã 2018 do Carnaval de Belém
poderia ter feito um grito de alerta pelas vidas de Barcarena, poderia ter
lembrado e homenageado a memória de Paulo Sérgio Nascimento. Preferiu
exaltar a indústria da mineração.
Por Raphael Castro*
jornalismoraphael@gmail.com
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3°Carro do Rancho: "Povo próspero x indústria próspera". Foto: Camila Lima/Portal Cultura/Reprodução. 2019.
No sábado, 23 de fevereiro, as nove
escolas de samba do grupo especial de Belém desfilaram na Aldeia Cabana de
Cultura Amazônica Davi Miguel, no bairro da Pedreira. O Grêmio Recreativo
Jurunense Rancho Não Posso Me Amofiná, quinta escola a entrar na avenida,
apresentou o samba-enredo “Made in Barcarena: Eu canto o encanto do teu
universo” para contar uma história da cultura e do “futuro promissor” do
município paraense de Barcarena, região do Baixo Tocantins.
Nada mais justo que a escola
jurunense faça uma homenagem ao município que, segundo nos conta a antropóloga
Carmen Izabel Rodrigues em seu artigo “O bairro do Jurunas, à beira do Rio Guamá”, é um dos
lugares de origem dos migrantes que, chegando pelos rios à capital em busca de
“progresso”, formaram social e culturalmente o que hoje é a população do bairro
do Jurunas.
No entanto, a história que o Rancho
contou na avenida mostrou exclusivamente uma Barcarena feliz e “desenvolvida”
graças à bem sucedida indústria de mineração que se instalou no município no
período dos governos militares. Escondeu que a mistura dos povos originários, do
povo escravizado e dos catequizadores não se deu “num belo matiz”, mas sim em
uma relação racista de colonização que promoveu genocídios e apagamento cultural. Escondeu a Barcarena de
hoje: sofrida, envenenada e injustiçada justamente pelos megaempreendimentos
industriais que exploram o município e penalizam a população mais pobre, os
povos indígenas e os quilombolas.
É, no mínimo, curioso que o Rancho
conte essa história “emoldurada em fantasia” na mesma ocasião em que se
completa 1 ano do ultimo crime ambiental, provocado pelo vazamento de rejeitosde minério da Hydro Alunorte, que
causou gravíssimos prejuízos para população e para toda biodiversidade de
Barcarena. A quem interessa esconder essa história?
A primeira parte do desfile mostrou
os povos indígenas Gibirié e Mortigura, originários do território onde hoje é
Barcarena, homenageou a missão catequizadora dos jesuítas e falou da Cabanagem.
Em seguida, o espetáculo falava da cultura popular de Barcarena, homenageando o
barcarenense Mestre Vieira e fazendo referência ao tradicional Festival do
Abacaxi e às praias, uma das belezas naturais do município.
O pomposo espetáculo bem
coreografado, ao som da Furiosa bateria bem afinada, era tão bonito que podia
nos induzir a uma fantasiosa realidade. Nem parecia que nos ultimos anos as
belas praias de Barcarena foram alvo de contaminação por caulim dos rejeitos
da Imerys e por carcaças de bois mortos no naufrágio do navio Haidar no porto
de Vila do Conde; que os rios da região foram contaminados por chumbo e outros
elementos pesados de resíduos de minério da Hydro.
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Praia de Vila do Conde/Barcarena após o naufrágio do navio Haidar, em 2015, que transportaria milhares de cabeças de boi. Foto: Tarso Sarraf/G1 Pará/Reprodução.
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Não se trata aqui de uma obsessão
por crítica social em tudo - ainda que, de fato, o Samba tenha em suas origens
um caráter de contestação social e este momento histórico do Brasil inteiro
exija mesmo críticas -, mas falar de Barcarena neste momento, sem dar visibilidade
à grave crise social e ambiental que castiga sua população é ser conivente com
todos os crimes que as multinacionais têm cometido, com a subserviência do
Estado, naquela região.
Há pelo menos 14 anos o Laboratório
de Química Analítica e Ambiental da Universidade Federal do Pará já apresenta
pesquisas que comprovam a presença de metais pesados nos rios e igarapés da
região provocados pela contaminação de rejeitos de minério de empresas
multimilionárias como Imerys e Hydro. O Instituto Evandro Chagas (IEC) também
já apresentou laudos que comprovam a contaminação por chumbo e outros elementos
cancerígenos nas águas, no solo, até nos fios de cabelos do povo de Barcarena
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Igarapé
de Barcarena contaminado por vazamento de caulim da Imerys, em 2014. Foto:
Viviane Franco / Blog da Franssinete Florenzano / Reprodução.
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O deputado estadual Renato Ogawa
(PR), que é do município de Barcarena, desfilava na avenida orgulhoso em
mostrar as "riquezas desse chão", mas deveria ter vergonha de ser um dos
deputados que está, junto com o governador Helder Barbalho (MDB) e o
vice-governador Lúcio Vale (PR), de mãos dadas com a norueguesa Hydro. A Hydro,
no mês passado, ganhou de presente do Governo do Estado do Pará a licença para
voltar a operar em 100% de sua capacidade, mesmo sem ter resolvido a maior
parte do problema causado pelo ultimo vazamento, sem sequer ter reconhecido que
contamina água, solo, bicho e gente. Algumas das comunidades afetadas por essa
contaminação receberam até agora nada mais que galões de água e um
vale-alimentação temporário de R$ 670,00, verdadeiras migalhas comparadas ao
prejuízo de vida que têm sofrido.
As lideranças comunitárias que
denunciam os crimes ambientais e violações de direitos humanos em Barcarena
estão sob constantes ameaças de morte ou já foram fatalmente silenciadas, como
foi o quilombola Paulo Sérgio Almeida Nascimento, assassinado no dia 12 de março de 2018.
Paulo Sérgio denunciou as ameaças, pediu proteção ao Governo do Estado, mas foi
ignorado.
Qualquer penalização às empresas, os
patrões empurram a conta para ser paga pelos trabalhadores que são ameaçados
pelo desemprego e, não por acaso, são induzidos a reconhecer como seu inimigo
os ativistas que lutam contra a impunidade das empresas. Sem falar que esses
trabalhadores também são potenciais vítimas das catástrofes provocadas pela
negligência das mineradoras, como assistimos há pouco mais de um mês no caso de
Brumadinho.
Tudo isso é abafado, é silenciado,
com a ajuda das autoridades e da mídia, para não sair das bandas de lá de
Barcarena. Ainda assim, o Rancho
preferiu se amofiná e bajular "as caravelas da cobiça" do Distrito Industrial de Barcarena.
A TV Cultura do Pará, que voltou a
transmitir o desfile das escolas de samba depois de anos, em sua programação,
se limitou a fazer comentários batidos e elogiosos. Obviamente, não seria a TV
dirigida pelo Governo do Estado do Pará quem iria lembrar ao telespectador que
faltava um importante pedaço da história a ser contado naquele desfile.
“Indústria próspera x Povo
miserável” é como deveria se chamar o terceiro carro alegórico do Rancho. Esse
carro, que representava a indústria do alumínio em Barcarena, em determinado
momento soltou fumaça e papel alumínio picado, em uma debochada referência aos
poluentes que saem das chaminés das fábricas sufocando e adoecendo as comunidades do
entorno.
Que “futuro promissor” que “alumina
o coração” é esse que o Rancho levou pra avenida? A Barcarena que padece de
câncer, figurativa e literalmente, foi escondida nesse desfile, foi
desconsiderada da homenagem.
É importante destacar que essa
postura do Rancho não condiz com a história da escola fundada pelo negro comunista Raimundo Manito, com sua comunidade, com
a festiva e politizada tradição cultural do Jurunas. Onde foi parar o espírito
ranchista que em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial contrariou a proibição de
concursos carnavalescos e levou pra avenida o samba “Deixa o ‘não posso’
passar”? O
samba-enredo do Rancho em 2019 não tem nada a ver com aquele de 1985, "Amanheceu", que comemorava
valente o fim da ditadura militar brasileira:
[...]
Nesta
festa o povo dança
se
renova a esperança
de
quem não se amofinou
É
carnaval
É
hora do meu Rancho desfilar
E
lá vou eu…
Amanheceu
um novo dia.
(Amanheceu
- Rancho Não Posso Me Amofiná, 1985)
Faltou a ousadia do samba ranchista
campeão do carnaval de Belém em 2018 que fez a avenida vibrar em defesa
da diversidade, contra o preconceito. Ainda que digam por aí que “carnaval é
assim mesmo”, esse é um fato que precisa ser questionado em nome das origens e
da importância cultural do samba e do carnaval.
O Rancho Não Posso Me Amofiná é a escola mais antiga do Pará e a quarta mais antiga do Brasil, representa uma enorme importância para cultura
regional e nacional. Com essa postura, de esconder uma dramática e grave
realidade que grita pra tentar ser ouvida, o Rancho vai na contramão da
tradição de consciência e contestação do Samba e presta uma desinformação à
população que assiste o carnaval.
A culpa não é da comunidade que
constrói o Rancho no dia a dia e dá sempre um show de arte e cultura na avenida,
como o fez esse ano. A culpa é dos interesses de quem comanda o carnaval, de
quem comanda o estado e de quem comanda a indústria da mineração na Amazônia.
*Raphael Castro é jurunense,
jornalista e mestrando em Comunicação e Cultura na UFPA.
Referências
SECRETARIA DE ESTADO DE MEIO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE DO
PARÁ. Semas retira embargo da Hydro e libera atuaçãoda empresa em Barcarena. 2019.