terça-feira, 15 de abril de 2014

Perseguição de Dilma, PF e ruralistas à etnia Tenharim lembra processo da Junta das Missões no século XVIII


Artigo:

O estranho processo dos Autos da Devassa contra os índios Mura do Rio Madeira e nações do Rio Tocantins (1738-1739)   

por Yurgel Caldas*

Resumo:

Documento que inaugura os processos jurídicos publicados contra os índios da Amazônia, os Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739) mostram uma das estratégias de colonização que prepara o terreno para os procedimentos da “guerra justa” contra grupos indígenas que, do ponto de vista da Metrópole, impedissem as expansões política, religiosa e sobretudo econômica de Portugal. Este trabalho tem o objetivo de fazer uma leitura crítica dos referidos Autos da Devassa..., provocada pela flagrante manipulação das testemunhas de acusação aos gentios citados e pela sutil disputa entre as ordens religiosas atuantes na Amazônia pelo domínio espiritual dos nativos daquela região, determinado muito mais por fatores econômicos que por religiosos.

Palavras-chave: Mura, colonização, Amazônia.

Introdução

O interesse econômico na Amazônia setecentista foi determinante para o estabelecimento de uma política de extermínio contra os índios que se recusavam, como os Mura, a ceder espaço ao processo colonizador na região. Fácil concluir que o conflito surge dessa conjunção de forças em ação: de um lado a administração colonial, querendo e necessitando, a todo custo, criar formas de exploração econômica em áreas ocupadas por grupos indígenas e cobiçadas por forças estrangeiras; de outro, os índios resistindo ao referido processo, com os recursos disponíveis (sabotagens, saques, ataques fluviais e alta rotatividade no espaço da selva).

A partir dos primeiros relatos jesuítas sobre a presença incômoda dos índios Mura na região do rio Madeira – os quais depois espalhar-se-iam espantosamente por toda a bacia amazônica, como mostram alguns momentos hiperbólicos do poema Muhuraida, de Henrique João Wilkens (manuscrito de 1785 e 1ª edição de 1819) –, tais índios seriam alvo de um grande processo de cunho jurídico, movido pelos relatos de grande parte de século XVIII.

É nesse contexto do grande processo secular – cujo elemento central é o índio Mura, que se torna quase que simultaneamente o acusado, o julgado, o condenado e o apenado – que se devem ler os Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739), “uma das mais importantes séries de documentos da história colonial da Amazônia oitocentista” (CEDEAM, 1986, p. 1). Assim, esses Autos da devassa... – primeiro conjunto publicado de processos jurídicos contra índios amazônicos – constituem peça importante no contexto em que se inseriam os procedimentos para uma guerra justa contra os gentios na colônia portuguesa. Como aponta a “Introdução” de Adélia Engrácia de Oliveira, esses documentos podem ser encarados como parte integrante de uma política de limpeza étnica nas “áreas habitadas por grupos indígenas que impediam a expansão política e econômica de Portugal” (OLIVEIRA, in CEDEAM, 1986, p. 1).

O Processo

Processo que se inicia com a certidão do provincial da Companhia de Jesus, padre José de Souza, os Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739) são constituídos por catorze documentos assim discriminados:
a)      o nº 1 é justamente a denúncia do referido jesuíta;
b)      o nº 2 é a ordem do governador do Grão-Pará, João de Abreu de Castelo Branco, para que se faça a devassa contra os j
c)      o nº 3 – talvez o mais importante e certamente o mais intrigante do processo, por razões que veremos a seguir – é o inquérito das 33 testemunhas, investigado pelo ouvidor geral da capitania, Salvador de Souza Rebelo;
d)     o nº 4 é o parecer de José de Souza, o mesmo que inicia o processo de acusação contra os índios;
e)      os documentos de nº 5 a 11 englobam os pareceres dos membros da Junta das Missões – formada por padres jesuítas, carmelitas, mercedários e capuchinhos – onde se percebe uma disputa entre algumas ordens religiosas, principalmente entre jesuítas e mercedários;
f)       o nº 12 trata do parecer do ouvidor geral, Salvador de Souza Rebelo, a favor da guerra contra os Mura, mas caudaloso em relação à mesma ação contra os índios do rio Tocantins;
g)      o nº 13 consiste no parecer do governador João de Abreu de Castelo Branco, pela guerra contra os Mura e as nações do rio Tocantins;
h)      o nº 14 apresenta a decisão do rei de Portugal, D. João V, contrária à legitimidade e à necessidade da guerra contra os índios citados nos autos do processo.

Se Adélia de Oliveira aponta as motivações econômicas como o motivo principal dos documentos que compõem os Autos da devassa..., não seria de se espantar que, à revelia da decisão régia, extra-oficialmente os índios, sobretudo os Mura, fossem atingidos, “massacrados e atacados anualmente pelas ‘Tropas Auxiliares da Capitania’ e por expedições primitivas diversas, o que os fez sofrer grande mortandade, aumentada por epidemias como sarampo e bexiga” (CEDEAM, 1986, p. 5). Logo a seguir, Oliveira revela também que em “1774-1775 o Ouvidor Geral, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio pede a mais enfurecida guerra contra os Mura e cerca de dez anos depois a mesma solicitação é feita por Alexandre Rodrigues Ferreira” (CEDEAM, 1986, p. 5-6).

O apelo comercial no contexto geral da devassa não se relacionava apenas aos Mura, que ocupavam o caminho fluvial até as minas de Mato Grosso e a própria área de extração do cacau, mas também dizia respeito às nações indígenas do rio Tocantins, que estavam estabelecidas na região de acesso às minas de São Felix (atual Estado de Goiás) e nas fazendas de gado e extração de cravos e tartarugas.

Os documentos de nº 5 a 11 dos Autos da devassa... – pareceres dos diferentes membros da Junta das Missões –, ao revelarem uma sutil disputa entre as ordens religiosas que atuavam no interior da Amazônia durante o século XVIII, mostram a grande vantagem jesuíta, granjeada no decorrer do século anterior, tanto nos âmbitos territorial e econômico quanto propriamente na questão missionária – como a redução de inúmeras nações indígenas, justamente para dar conta da mão-de-obra necessária à coleta das drogas do sertão. Nesse contexto, o parecer do frei capuchinho Clemente de São José (doc. nº 5), comissário provincial de Santo Antonio, põe em dúvida a legitimidade e a lisura dos depoimentos das testemunhas (doc. nº 3), desqualificadas por serem “parte interessada” no processo, visto que “ninguém pode ser testemunha em causa própria” (CEDEAM, 1986, p. 99).

Por não se expressarem claramente os fatos narrados, pois “se é fama constante entre 31 testemunhas que se tiraram nesta devassa, por que não depõem sequer uma de vista? Antes só dizem umas que ouviram dizer, e outras que o sabem, mas nenhuma dá razão do seu dito” (CEDEAM, 1986, p. 99); e por demonstrarem uma artificialidade no conjunto dos depoimentos prestados, já que “todas [as testemunhas] falam pelo mesmo teor, dizendo que o dito gentio tem feito muitas mortes aos que vão às tartarugas, aos que descem de cima e aos que desceram das minas de São Felix” (CEDEAM, 1986, p. 99-101), o frei Clemente de São José – que, na opinião de Samuel Benchimol, exerce a função de “verdadero abogado del diablo, en defensa de los Mura, Reos Rebeldes en el Interrogatório” (CAMACHO, ANGEL [comps.], 1990, p. 244-245) – conclui seu parecer, considerando que,

do sumário das testemunhas e seus ditos, não se colhe evidentemente a intenção purificada, pois quase todas depõem pelos mesmos termos [...]. E tais não merecem muita atenção para que por eles se lhes possa dar guerra justa, e muito menos fazem prova os que juram (CEDEAM, 1986, p. 105).

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Em seu segundo parecer (doc. nº 10), o frei Clemente reafirma o que já apontara na sua primeira intervenção no processo, e ainda aproveita para atacar diretamente os interesses do jesuíta José de Souza:

Ao que respondo que depoimentos de testemunhas ofendidas não merecem muita atenção [...]. Nada provam e muito menos fazem legalidade os que juram pelo que a elas ouviram [...]. Logo, não faz prova em direito seu depoimento, de mais que o reverendo padre [José de Souza] é testemunha injuriada [...] e testemunhas inimigas nada provam (CEDEAM, 1896, p. 139-141).

De fato, são dignos de desconfiança os depoimentos de muitas das 33 testemunhas. Em todos eles, percebe-se claramente a construção de um depoimento-síntese, a partir de um texto único, com um discurso unificador, provocando no leitor uma forte impressão de manipulação das próprias testemunhas, como se vê no seguinte depoimento, muito próximo, em todos os sentidos, de outros relatos:

Disse que sabe por ouvir dizer, pública e geralmente, que o gentio bárbaro chamado Mura, do rio Madeira, tem feito várias mortes assim a brancos como a negros que vão àquele rio à colheita do cacau, de sorte que é tanto o temor dos moradores desta cidade [Belém] que algum negócio de cacau que fazem é à beira do dito rio, e que os mesmos delitos faz o gentio do rio Tocantins, impedindo as pessoas que vêm fazendo viagem das minas para esta cidade [Belém]” (CEDEAM, 1986, p. 45)

Interessa aqui menos saber a quem pertence o depoimento acima (Felipe Delgado) do que a quem serve tal texto. Por isso, é importante localizar entre as testemunhas gente ligada à exploração
econômica atingida pela devassa (mineração e agricultura), para estabelecer as reais intenções desse discurso que aponta o Mura como o grande responsável pelo atraso econômico da região. Esse claro sentimento de estranheza em relação aos depoimentos das testemunhas civis também provoca em Samuel Benchimol um posicionamento crítico sobre o contexto obscuro do conjunto de todo o processo envolvendo os Mura e as nações do Tocantins. Assim, o “Registro de las de claraciones [...] da una buena idea de la trama preparada a propósito en los bastidores de la justicia colonial, el resultado de la ingenuidad, ignorancia o servilismo de los indagados” (in CAMACHO, ANGEL [comps.], 1990, p. 234).

Quanto às nações do rio Tocantins – “que nem nome próprio, nem em toda devassa se lhe acha [...] – pouco prejuízo nos fazem a nós, que vivemos delas afastados” (CEDEAM, 1986, p. 121), estando por isso livres de ações militares em seus territórios. Nota-se, portanto, que os Mura – única nação indígena nomeada nos Autos da devassa... – pagam alto preço pela imagem que deles fez o colonizador desde o início do século XVIII, enquanto que as nações do rio Tocantins, que sequer são especificadas no processo, são preservadas por serem “desconhecidas” até aquele momento, ou pelo menos não tão perigosas quanto os Mura.

O frei Manoel de Marvão, comissário provincial de Piedade, também percebe a falta de clareza no depoimento das testemunhas, entretanto, ao contrário do frei Victoriano Pimentel, considera desnecessária a guerra contra os Mura e os índios do Tocantins, embora sugira uma “contra-guerra” de cunho defensivo, com a presença de tropas de resgate, tanto na região do rio Madeira, quanto na do Tocantins. O que o frei Marvão pretendia era, na verdade, a aplicação de uma “guerra justa defensiva” – recurso utilizado em caso de ataques de índios a estabelecimentos portugueses, impedindo assim a circulação de colonos e missionários por aquele território do rio Madeira. Assim, Marvão parte do pressuposto de que, ao ocuparem a dita região, os Mura deveriam ser considerados “invasores” da área virtualmente pertencente aos portugueses.

Com isso, o parecer de Manoel de Marvão se destaca dos demais membros da Junta das Missões, não pela detecção da falta de consistência no teor dos depoimentos das ditas testemunhas, mas pela inclusão no processo das tropas de resgate enquanto elemento militar para uso econômico, pois seria a determinação de uma “contra-guerra em defesa das canoas que vão ao dito rio” (CEDEAM, 1986, p. 127).

Em seu longo texto, o frei Manoel de Marvão aproveita ainda para denunciar as condições em que estavam os indígenas no território amazônico. Após considerar que as agressões dos índios poderiam ser uma reação à escravização imposta pela Administração portuguesa, o frei Marvão destaca:

Sendo também certo, público e notório que todos os anos se amarram injustamente nos sertões milhares e milhares de gentios, e se vem vender a esta cidade e contornos dela contra as leis divinas, humanas e decretos especiais de Vª Mag., em cujas amarrações é sabido que os brancos matam muitos índios, e há doze anos esta parte que eu assisto nesta cidade, e não me consta que os índios matem aos brancos (CEDEAM, 1986, p. 129)

É preciso deixar claro, porém, que o discurso do dito frei possui um teor menos revolucionário que jurídico, afinado com o contexto das ordens religiosas nos sertões amazônicos do século XVIII. Dessa maneira, o gentio que Marvão defende é o Mura – ainda não “descido”, mas pretendido como “civilizado” pelas diversas ordens missionárias –, mas também é o índio já reduzido, ou seja, aldeado e estabelecido sob o domínio religioso, que estava sendo capturado pela administração colonial. Tal situação criava um panorama favorável a um conflito aberto entre forças religiosas e políticas, o que acabaria ocorrendo principalmente na segunda metade do século XVIII, com a política de colonização da Amazônia, proposta pelo Marquês de Pombal.

Daí entende-se melhor a reclamação de Manoel de Marvão, desaprovando a ação colonial, que agia

não só para amarrar os índios do sertão para vir vender, mas também para levar por força e contra as leis de Vª Mag. os índios das aldeias já cristãs, sem perdoarem aos pescadores, sacristães e cozinheiros dos missionários, assaltando muitas vezes de noite as residências dos padres, açoitando as mulheres para lhe dizerem aonde estão os maridos, embebedando-as e levando também algumas (CEDEAM, 1986, p. 129)

A mesma conclusão chega o comissário geral dos mercedários, frei Manoel Borges, que se posiciona a favor dos índios, ao considerar “que a devassa não culpa ao gentio destes dois rios com crimes porque haja de se lhe dar guerra ofensiva nem defensiva” (CEDEAM, 1986, p. 145). Dos dois principais argumentos utilizados pelo mercedário, um faz eco aos pareceres dos outros religiosos – “porque muitas das testemunhas que juram nunca foram ao sertão, e a maior parte delas juram que ouviram [sic] [...] porém não declaram a causa que deram” (CEDEAM, 1986, p. 145) – e outro constitui novidade pró-índio nos autos, pois indica uma forte contradição nos depoimentos das testemunhas. Partindo-se das declarações de que somente a nação Mura tem provocado o terror na região do rio Madeira, e “se esta nação é de corso, e não tem parte certa, como afirmam todos” – indaga o frei Borges – “donde se lhe poderá dar com acerto?” (CEDEAM, 1986, p. 145).

Ao desmontar o discurso homogêneo das testemunhas, o frei Manoel Borges acirra ainda mais os ânimos entre as ordens religiosas presentes nos Autos da devassa... – espécie de metonímia da Amazônia no que se refere às disputas por terras, exploração comercial de recursos minerais e agropecuários, incluindo a cobiçada mão-de-obra indígena e a propagada dilatação da fé cristã nos confins do Brasil, durante o século XVIII. Assim como fizera Manoel de Marvão, o frei Manoel Borges levanta a voz contra a prática centralizadora dos jesuítas, que já dominavam o território amazônico desde o século anterior. No dizer de Borges, cativar

o gentio forro e liberto [constitui ação colonizadora da qual fazia parte a prática jesuíta, por meio de uma] dependência [que] há muitos anos trazem os padres da Companhia e já muito tempo se lhe respondeu a este requerimento que não era justo que à custa da Real Fazenda se lhes limpassem os sertões para as suas conveniências (CEDEAM, 1986, p. 145)

Os pareceres do ouvidor geral da capitania do Pará e executor da devassa, Salvador de Souza Rebelo, e do governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, João de Abreu de Castela Branco, são favoráveis à guerra contra os índios. A diferença é que o texto do ouvidor geral pede a guerra somente contra os Mura, “enquanto ao gentio do rio dos Tocantins [...] pareceu-me ser preciso preceder mais alguma averiguação” (CEDEAM, 1986, p. 151); ao passo que o parecer do governador condena tanto os Mura quanto as nações do rio Tocantins, pois “me parece que seja justo e conveniente ao serviço de V. Mag. que, depois de executada a guerra com os Tocantins, se proceda a fazê-la no rio da Madeira” (CEDEAM, 1986, p. 159).

Por fim – após quase sete meses de trâmite documental por ocasião do processo que investigava possíveis atitudes criminosas de nações indígenas das regiões do rio Madeira e Tocantins (um recorde de tempo para a época) –, o parecer definitivo sobre a devassa, de autoria do rei D. João V, consiste na desautorização da guerra aos índios denunciados. Quanto aos Mura, o rei determina “que não está em termos de se reputarem como justas e necessárias estas guerras” (CEDEAM, 1986, p. 163); enquanto
que acerca dos índios do Tocantins, o monarca luso diz apenas que “se deve ter cuidado em não adiantar as povoações para aquela parte para melhor se observar a proibição daquele caminho” (CEDEAM, 1986, p. 163).

Esse aparente descaso oficial em relação ao território do rio Tocantins pode ser explicado menos pelo fato de não haver, naquele momento (final dos anos de 1730), um comércio fluvial estabelecido entre aquela área e a capitania do Grão-Pará, e mais pelos prejuízos com a prática do contrabando. O desinteresse da Coroa lusitana em declarar guerra contra os índios dos Autos da devassa... atende, em última instância, a uma determinação pessoal de D. João V, com vistas a dificultar a remessa ilegal de drogas de sertão e principalmente de ouro.

Conclusão

O insistente foco dado á região do rio Madeira – que já se nota no próprio título do processo contra os Mura e as nações inominadas do Tocantins – reflete, na verdade, parte das opiniões que formam o universo dos pareceres dos membros da Junta das Missões. Assim são a denúncia inicial do jesuíta José de Souza – a favor da guerra contra os Mura, mas ainda cauteloso quanto ao ataque contra os índios do Tocantins – e as avaliações do carmelita Victoriano Pimentel.

As nações do rio Tocantins, “sem nome próprio” (CEDEAM, 1986, p. 121), ficam mesmo sem perspectiva de qualquer punição por parte do poder administrativo, atendendo a uma estratégia real de diminuir o fluxo do contrabando de minérios e produtos agrícolas naquela região. Já o índio Mura – pelo fato de ser bravo, “de corso, sem domicílio [e penetrar] os sertões de rio a rio” (CEDEAM, 1986, p. 121)  – passa a ser o grande e único vilão de todo o processo jurídico movido naquelas circunstâncias, apesar das determinações régias em contrário.

Dos sete membros da Junta das Missões, que emitiram pareceres nos Autos da devassa..., cinco acusam o padre José de Souza – antigo inimigo dos índios Manao, cuja redução, por meio de guerra justa, teve a participação do referido jesuíta – “de agir em causa própria, já que a missão [jesuíta] tinha interesses no cacau do rio Madeira. Somando-se ainda o fato de ser o mesmo Juiz da citada junta, contrariando os preceitos mais basais do direito canônico” (ATHILA, 1998, p. 67).
Mais que isso: percebe-se uma configuração contenciosa entre os missionários das Ordens que compunham a Junta das Missões. Se, por um lado, jesuítas e carmelitas votam a favor da guerra contra os índios, por outro, mercedários e carmelitas são contrários a tal determinação – situação esclarecedora acerca da disputa entre eles: uns tentando ampliar sua já vasta área de influência, outros denunciando as práticas comerciais ilícitas e desumanas dos inacianos, em relação aos índios da Amazônia.

Em Muhuraida, apesar de não ocorrer uma disputa explícita entre os missionários das ordens religiosas citadas no decorrer do poema – diferentemente do que se apresenta nos Autos da devassa... –, é por meio do frei carmelita José de Santa Tereza Neves que se cumpre o ritual do batismo das vinte crianças muras, que encerra maravilhosamente o poema amazônico. Em nota, Henrique João Wilkens confirma a atuação do dito frei que, no dia 6 de junho de 1785, “administrou o sagrado batismo” (WILKENS, 1993, p. 169) das referidas crianças. Além disso, no canto II do poema, o autor faz questão de mencionar as tentativas frustradas dos missionários na tarefa de redução dos Mura, dentre eles os da própria Ordem dos carmelitas:

Não só os jesuítas, que no rio Madeira tinham missões até o ano de 1756; mas ainda os carmelitas e mercedários intentaram, por algumas vezes, intimando aos Mura, por intérpretes, as verdades de nossa santa fé, reduzi-los e agregá-los ao grêmio da Igreja, buscando-os nos bosques, mas sempre foi frustrada esta diligência (CEDEAM, 1986, p. 113).

Se é verdade que não há disputa aberta entre os missionários no poema de Wilkens, é verdade também que vem a calhar o fato de não ter sido um frei jesuíta o administrador do batismo dos pequenos muras. Essa situação vai ao encontro dos objetivos geoestratégicos do autor de Muhuraida, como ativo participante das comissões de demarcação territorial na Amazônia, bem como do desejo pombalino de combate direto contra os muitos poderes da Companhia de Jesus, que ultrapassava a seara espiritual no Brasil. Sendo assim, os Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739) e Muhuraida – mesmo sendo obras distantes entre si por quase meio século – afinam-se no questionamento ao poderio jesuíta, além de ajudarem e construir e fixar uma imagem demoníaca do índio Mura.

Referências Bibliográficas

[1] ATHILA, Adriana Romano. Índios de verdade: territorialidade, história e diferença entre os Mura da Amazônia Meridional. Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ, 1988 (Dissertação de Mestrado).

[2] BENCHIMOL, Samuel. Introducción a los “Autos da Devassa” de los indios mura (1738). CAMACHO, Roberto Pineda, ANGEL, Beatriz Alzate (comps.). Los meandros de la historia em la Amazonia. Quito: Abya-Yala; Roma: MLAL, 1990, p. 215-66.

[3] CEDEAM. Autos da devassa contra os indios Mura do rio Madeira e naçoes do rio Tocantins (1738-1739). Manaus: Universidade do Amazonas; Brasília: INL, 1986.

[4] ILUSTRAÇÃO necessária e interessante relative ao gentio da nação Mura em 1826... e Observações adicionais à Ilustração necessária e interessante relative ao gentio da nação Mura. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, s.d. (Manuscrito anônimo).

[5] NOTÍCIAS da voluntária redução de paz e amizade da feroz nação do gentio Mura nos anos de 1784, 1785 e 1786. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXXVI, 1ª parte, 1848, p. 323-92.

[6] AMOROSO, Marta Rosa, FARAGE, Nãdia (orgs.). Relatos da fronteira amazônica: Alexandre Rodrigues Ferreira e Henrique João Wilckens. São Paulo: USP/NHII; FAPESP, 1994.

[7] WILKENS, Henrique João. Muhuraida ou o triunfo da fé... Manaus: Biblioteca Nacional/UFAM/Governo do Estado do Amazonas, 1993.
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*Prof. Dr. Yurgel Caldas é titular da Universidade Fedefral do Amapá e escreveu este artigo para o XI Congresso Internacional da ABRALIC - Tessituras, Interações, Convergências, que ocorreu em São Paulo, de 13 a 17 de julho de 2008 na USP – São Paulo, Brasil.

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