quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A cidade que flutua

Escrevi este texto numa viagem ano passado para Afuá, Ilha do Marajó. Preservei o texto da forma que saiu. Por isso às vezes está no presente, às vezes no passado recente. Enfim. Um dia edito. Espero que gostem!

por Marcus Benedito


Saímos às 19h da Rampa de Santa Inês. Tomamos o barco motor Fé em Deus de Afuá. Logo cedo, chegamos e armamos nossas redes. Alguns papos com outros passageiros. Uns cigarros. Dá-lhe carregamento de cargas no porão e no primeiro convés. (As letras estão tremidas devido o trepidar do motor do navio.)

A travessia do Rio Amazonas em frente de Macapá tem certa dose de emoção em decorrência do vento e da maresia. Na minha infância, confesso, essa travessia parecia mais assustadora. Será por quê na infância tudo é superlativo para a gente? Será por quê a generosidade da criança garante sempre mais cor, realismo, verdade à  vida e esta acaba sendo mais saboreada, vivida, testada? Enfim... O fato é que quando eu estava nas férias escolares, não perdia tempo, aproveitava para ir ao encontro de meu pai, matar a saudade e ficar que nem o rabo dele o acompanhando em suas viagens no Rodrigues Alves nas linhas de Cametá, Santarém e Macapá.

Como dizia, nesse tempo essa travessia em um navio de 3 conveses, que carregava centenas de toneladas de cargas, me era muito assustadora em função do banzeiro. Lembro que chegaram até a mudar os horários de saídas do Rodrigues de Belém para Macapá e vice versa para as 9h da manhã, para que passasse nessa travessia de Macapá sempre de manhã. É o tempo quando os ventos não estão muito irritados. Hoje essa maré não está tão braba assim. A gente já pode fazer essa viagem a noite. E confesso novamente: a noite é mais gostoso. É um encanto, principalmente quando tem luar.

À medida que nos afastamos da capital amapaense, as estrelas vão aparecendo uma a uma. Cada qual rasgando a noite ao seu jeito, inundando a escuridão de brilho. Claro, nada comparado ao que faz a lua! Navegar nos rios da Amazônia é uma verdadeira poesia... Obviamente que uma poesia pode ser o que você quiser que seja. Para mim é uma poesia concretista, bagunçada, alegre e triste. À noite, as estrelas e a lua invadem os rios, tomam os navegantes e nos bebem por completo. Sem deixar de mencionar o belo balé formado pelas pessoas em suas redes. Coloridas, cheias de seus motivos, indo e vindo. Claro, sob a vontade do suserano mor dessas paragens, o Rio Amazonas. Com cheiro de barco, barulho de motor, e nas embarcações regionais (como a que nos encontramos), com um gosto de mixto quente, cerveja, flerte, olhares, sorrisos, compadecimento, adeus.

Vai e vem


Entre os passageiros encontramos de tudo. De veteranos a marinheiros de primeira viagem. Há os que estão de mudança e viajam naquela esperança de encontrar um mundo melhor. Vindos de todo canto. Em busca do velho eldorado. Há pessoas de outros estados. Maranhenses, cearenses, goianos. Tem comerciantes, famosos caxeiros viajantes. Há os que sempre viajam. Semana sim, semana não. Vire e meche estão de subida ou descida. Há os que voltam com a criança que nasceu na cidade grande, o que vieram se tratar de alguma enfermidade, os que não conseguiram cura e voltam em um caixão. De viagens, como dito no início, não sou virgem. Nem de viajem com j e nem de viagem com g. Mas meu parceiro de trabalho, que me acompanha nessa missão até Afuá, este sim é. Terapeuta ocupacional, pai de dois filhos, casado, carinha gente boa. Na dele, comeu um mixto quente com guaraná, perguntou onde era o banheiro, foi dormir.

Afuá para esse mano que vos fala, esta sim é novidade. Do Marajó já conhecia quase todas as cidades. No tempo em que trabalhei no combate e prevenção aos acidentes de motor em pequenas embarcações com escalpelamento, vira e meche eu aportava em São Sebastião da Boa Vista, Breves, Muaná, Ponta de Pedras, Soure, Salvaterra, Oeiras do Pará, Portel, Gurupá. Falta conhecer Cachoeira do Arari de Dalcídio Jurandir e Giovane Galo, Santa Cruz do Arari, Chaves e Anajás. Uma hora dessas apareço por lá. Por hora estou rumando para Afuá, extremo norte do maior arquipélago plúvio-marítimo do mundo.

Barco e rio


Como todo rio amazônico, no maior não haveria de faltar as embarcações. São dezenas, ou melhor, centenas delas. Pequenas, médias e grandes. De transporte de cargas e/ou de passageiros. Um fato curioso: desde que saímos da Rampa de Santa Inês percebo outro barco de dois conveses, mais ou menos do mesmo porte do nosso, contudo, com algo que me deixou muito intrigado: além do farol de milha dianteiro, ele também tem um na popa. Não consigo imaginar outra finalidade para ele que não seja a de segurança naval. Como os nossos rios não estão para peixe, deve ter sido uma forma encontrada para afugentar os piratas. Temíveis corsários que amargam cotidianamente a vida dos ribeirinhos desta região.

São 22h31 e nenhum sinal de sinal da Vivo. Muito menos da Tim. Também, se os tivesse, talvez nem lhes teria escrito ou ao menos iniciado esta crônica de minhas viagens pelas cidades e comunidades amazônicas. Comecei a levar a sério isso há alguns anos. Mas não tão a sério assim, porque todos os meus escritos estão espalhados por casa. Desta vez, pelo menos estou a fazer em um caderno Tilibra pequeno, com caneta de tinta esferográfica azul , alimentado pela expectativa de conhecer mais uma cidade e a minha habitual falta de sono.

Quanto ao barco com o holofote trazeiro, após algumas horas de observação e me valendo de sua maior proximidade, posso asseverar que seu uso deve ser mesmo para despintar os piratas. Algo para fazê-los pensar ainda ao longe que as pretensas vítimas estão indo, quando na verdade estão vindo.

Quanto a brandura de navegar no Rio Amazonas a noite, que me surpreendera ao sair de Macapá, acabo de queimar minha língua. Não sabia que no nosso caminho estava a Baía do Vieira. O Amazonas adquire nomes diversos ao longo de sua passagem pelo Marajó. Aqui é Vieira. E que gingado tem o Vieira! O barco começou a balançar mais que bandeira em vendaval. O banzeiro não me amedronta, o único infortúnio é que as redes começaram a chocar-se uma nas outras. O pior foi a minha, que me jogava contra um esteio da embarcação. Mas superada a baía, veio a calmaria e às 1h15 do dia 10 de agosto de 2016 o barco motor Fé em Deus de Afuá atracou na cidade conhecida como Veneza do Marajó, Afuá.

Cidade suspensa


Construída sobre pontes, devido se tratar de uma área de várzea e igapós, paisagem típica nessa porção da Amazônia, Afuá tem características peculiares. Podemos dizewr que a cidade flutua sob as águas turvas dos rios. Trata-se de uma ilha. Os rios que cercam a cidade são Afuá, Cajuuna e Marajozinho, além de vários igarapés que entrecortam o lugar.

Fundada em 1891, a partir de uma comunidade católica, hoje o município tem uma população estimada em cerca de 37.398 habitantes (dados Wikipédia 2015) distribuídos entre a sede e a zona rural. Em que pese que desde os anos 90 o êxodo rural esteja muito presente, levando as pessoas a ocupar de forma desordenada a cidade, o que acaba por revelar inúmeros problemas sociais, como a falta de saneamento, emprego e serviços públicos de saúde.

As moradias são em sua maioria feitas de madeira, assim como as ruas, ainda que hajam algumas poucas de alvenaria. Não há presença de nenhum veículo automotor na cidade. O meio privilegiado de transporte é a bicicleta. Inclusive em frente da cidade há um grande estacionamento para as magrelas. O carro deles é uma bicicleta adaptada com quatro rodas, duas pedaleiras e pode transportar cargas e de 4 a 6 pessoas. Sem dúvidas uma engenhosa criação que garante um charme a mais para a localidade.

Durante o horário comercial, o silêncio habitual sede espaço para a rádio cipó, que além de algumas músicas populares no país inteiro, o forte é a propaganda dos estabelecimentos comerciais.

Vinho e comida


Em frente a quadra de esportes e na porção horizontal ao rio Afuá, tem um grande palco. Local dos shows e apresentações que ocorrem todo mês de julho, durante o Festival do Camarão, que em 2016 chegou a sua XXXIII edição. Nem precisa dizer, mas o camarão é o orgulho dos moradores da cidade e um dos carros chefe da culinária local. Claro, associado ao açaí, que nesses municípios do arquipélago do Marajó e Baixo Tocantins não são sobremesa. São prato principal. Sempre acompanhado de peixe, camarão, carne, frango, arroz ou feijão. Não importa! Pra este povo açaí é comida e ele não pode faltar.

O bom é que por essas bandas ainda não chegou a maldita extração para importação, o que tem feito o vinho do fruto ficar extremamente inflacionado, principalmente na Região Metropolitana de Belém (RMB). Em Afuá o litro custa de 3 a 5 reais. Média. Em Belém, a este preço, não se compra nem a churamba, que é a lavagem dos caroços após ser extraído o grosso da polpa do fruto.

Povo das águas


Rua de Afuá. Foto: Mauricio Paiva.
Outro brilho especial a Afuá é conferido pela estudantada. Os estudantes das comunidades ribeirinhas chegam cedo. Ainda não era 7h e a praça, onde também tem a quadra de esportes coberta, já estava repleta deles. Com seus uniformes, mochilas e cadernos, cada qual na sua. Paquerando, conversando, contando da vida e aguardando o horário do toque da campainha de entrada das escolas de ensino fundamental e médio.

As pessoas são tipicamente hospitaleiras, mas não de muita conversa. Gente trabalhadora, marcada pela labuta diária, de cor que revela a intensa exposição ao sol, ao sofrimento de viver num país subdesenvolvido no trópico úmido, mas com um brilho nos olhos que garante que a alegria, no menor descuido, rápido pula para fora e se mostra nos dentes sorridos e nos apertos de mão acalorados.

A maioria dos que vivem na sede do município é empregada do intenso centro comercial ou depende de benefícios sociais ou são servidores públicos. A população da zona rural, que de quando em quando povoam as manhãs dos dias úteis do município, são os responsáveis pelo grande vai e vem de pequenas embarcações nos rios que banham a cidade. E tem embarcação para todo tipo de finalidade. Que transporta gente e cargas, que transporta fruto do extrativismo vegetal, que transporta peixes e animais em geral. Inclusive aviste aqui embarcação que transporta combustível de forma irregular. O que sujeita seus condutores a sérios perigos. Outro dia um barco explodiu no porto de Abaetetuba. São os perigos pelos quais essa população batalhadora tem que passar para cumprir aquilo que sentenciou o escritor português do século XIX: “Navegar é preciso”. Mas a busca de dignidade e de vida com qualidade também é preciso. As autoridades são os principais responsáveis por isso. Triste, difícil e sofrida realidade.

 As crianças


As crianças são sempre um capítulo a parte. Em Afuá não poderia ser diferente. Acompanhando os pais, avós ou responsáveis, elas enfeitam os lugares como borboletas embelezam jardins. Com sua habitual honestidades, elas gritam, brincam, choram, exigem, doam, pintam e bordam.

Afuá é uma cidade de crianças. Caminhei por várias ruas. Floriano Peixoto, João Paulo, Generalíssimo... Elas lá. De todas as idades. Vestidas, nuas, jogando vôlei, bola, mergulhadas na mágica da imaginação. Vi um garotinho de mais ou menos um ano e pouco. Ele estava ao lado de outra um pouquinho mais velha. Carrega um martelo à mão. Pensei:

– Quem deixou este pequeno com um martelo na mão?!

Lembrei do dia que meu sobrinho, o mais velho, deu uma martelada na cabeça do meu irmão. Felizmente nada grave, a não ser a dor. Mas o que fazer? Errado foi quem deixou ele com o martelo à mão. Poderia ter caído em seus dedinhos do pés, poderia ter-se machucado feio. Acabou numa dor de cabeça.

As crianças maiores de Afuá brincavam de queimada. Acredito que era uma atividade escolar, pois percebi a presença de uma “tia” que parecia sua educadora física. Eram umas trinta crianças com idades de 11 a 14 anos. Uma grande e barulhenta queimada. No barco mesmo haviam várias. Já era tarde da noite e elas transitando por lá. Eu sou do tipo preocupado. Fiquei pensando na segurança delas. Na vulnerabilidade das mesmas. E se uma cai n’água? E o pior: ninguém vê? Nem é bom pensar...

Sigamos falando da festa e da gritaria. A festa chamada queimada. Elas lá entretidas. Aquele corre-corre. Joga bola pra lá, joga pra cá. Mais gritaria. Diverti-me muito vendo essas cenas. Já os marmanjos, quatro no total, jogavam vôlei na quadra ao lado. Fiquei impressionado. Os caras são bons! Mas a molecada chama atenção. Uma bola desferida por uma garota em um menino. Tocou nele e caiu no chão. A professora gritou: sai fulano. Contrariado, ele saiu. 
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Fonte da primeira imagem: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1797010

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