por Marcus Benedito
Saímos às 19h da Rampa de Santa Inês. Tomamos o barco motor
Fé em Deus de Afuá. Logo cedo, chegamos e armamos nossas redes. Alguns papos
com outros passageiros. Uns cigarros. Dá-lhe carregamento de cargas no porão e
no primeiro convés. (As letras estão tremidas devido o trepidar do motor do
navio.)
A travessia do Rio Amazonas em frente de Macapá tem certa dose
de emoção em decorrência do vento e da maresia. Na minha infância, confesso,
essa travessia parecia mais assustadora. Será por quê na infância tudo é
superlativo para a gente? Será por quê a generosidade da criança garante sempre
mais cor, realismo, verdade à vida e
esta acaba sendo mais saboreada, vivida, testada? Enfim... O fato é que quando
eu estava nas férias escolares, não perdia tempo, aproveitava para ir ao
encontro de meu pai, matar a saudade e ficar que nem o rabo dele o acompanhando
em suas viagens no Rodrigues Alves nas linhas de Cametá, Santarém e Macapá.
Como dizia, nesse tempo essa travessia em um navio de 3
conveses, que carregava centenas de toneladas de cargas, me era muito
assustadora em função do banzeiro. Lembro que chegaram até a mudar os horários
de saídas do Rodrigues de Belém para Macapá e vice versa para as 9h da manhã,
para que passasse nessa travessia de Macapá sempre de manhã. É o tempo quando
os ventos não estão muito irritados. Hoje essa maré não está tão braba assim. A
gente já pode fazer essa viagem a noite. E confesso novamente: a noite é mais
gostoso. É um encanto, principalmente quando tem luar.
À medida que nos afastamos da capital amapaense, as estrelas
vão aparecendo uma a uma. Cada qual rasgando a noite ao seu jeito, inundando a
escuridão de brilho. Claro, nada comparado ao que faz a lua! Navegar nos rios
da Amazônia é uma verdadeira poesia... Obviamente que uma poesia pode ser o que
você quiser que seja. Para mim é uma poesia concretista, bagunçada, alegre e
triste. À noite, as estrelas e a lua invadem os rios, tomam os navegantes e nos
bebem por completo. Sem deixar de mencionar o belo balé formado pelas pessoas
em suas redes. Coloridas, cheias de seus motivos, indo e vindo. Claro, sob a
vontade do suserano mor dessas paragens, o Rio Amazonas. Com cheiro de barco,
barulho de motor, e nas embarcações regionais (como a que nos encontramos), com
um gosto de mixto quente, cerveja, flerte, olhares, sorrisos, compadecimento,
adeus.
Vai e vem
Entre os passageiros encontramos
de tudo. De veteranos a marinheiros de primeira viagem. Há os que estão de
mudança e viajam naquela esperança de encontrar um mundo melhor. Vindos de todo
canto. Em busca do velho eldorado. Há pessoas de outros estados. Maranhenses,
cearenses, goianos. Tem comerciantes, famosos caxeiros viajantes. Há os que
sempre viajam. Semana sim, semana não. Vire e meche estão de subida ou descida.
Há os que voltam com a criança que nasceu na cidade grande, o que vieram se
tratar de alguma enfermidade, os que não conseguiram cura e voltam em um
caixão. De viagens, como dito no início, não sou virgem. Nem de viajem com j e
nem de viagem com g. Mas meu parceiro de trabalho, que me acompanha nessa
missão até Afuá, este sim é. Terapeuta ocupacional, pai de dois filhos, casado,
carinha gente boa. Na dele, comeu um mixto quente com guaraná, perguntou onde
era o banheiro, foi dormir.
Afuá para esse mano que vos
fala, esta sim é novidade. Do Marajó já conhecia quase todas as cidades. No
tempo em que trabalhei no combate e prevenção aos acidentes de motor em
pequenas embarcações com escalpelamento, vira e meche eu aportava em São
Sebastião da Boa Vista, Breves, Muaná, Ponta de Pedras, Soure, Salvaterra,
Oeiras do Pará, Portel, Gurupá. Falta conhecer Cachoeira do Arari de Dalcídio
Jurandir e Giovane Galo, Santa Cruz do Arari, Chaves e Anajás. Uma hora dessas
apareço por lá. Por hora estou rumando para Afuá, extremo norte do maior arquipélago
plúvio-marítimo do mundo.
Barco e rio
Como todo rio amazônico, no
maior não haveria de faltar as embarcações. São dezenas, ou melhor, centenas
delas. Pequenas, médias e grandes. De transporte de cargas e/ou de passageiros.
Um fato curioso: desde que saímos da Rampa de Santa Inês percebo outro barco de
dois conveses, mais ou menos do mesmo porte do nosso, contudo, com algo que me
deixou muito intrigado: além do farol de milha dianteiro, ele também tem um na
popa. Não consigo imaginar outra finalidade para ele que não seja a de
segurança naval. Como os nossos rios não estão para peixe, deve ter sido uma
forma encontrada para afugentar os piratas. Temíveis corsários que amargam
cotidianamente a vida dos ribeirinhos desta região.
São 22h31 e nenhum sinal de
sinal da Vivo. Muito menos da Tim. Também, se os tivesse, talvez nem lhes teria
escrito ou ao menos iniciado esta crônica de minhas viagens pelas cidades e
comunidades amazônicas. Comecei a levar a sério isso há alguns anos. Mas não
tão a sério assim, porque todos os meus escritos estão espalhados por casa.
Desta vez, pelo menos estou a fazer em um caderno Tilibra pequeno, com caneta
de tinta esferográfica azul , alimentado pela expectativa de conhecer mais uma
cidade e a minha habitual falta de sono.
Quanto ao barco com o holofote
trazeiro, após algumas horas de observação e me valendo de sua maior
proximidade, posso asseverar que seu uso deve ser mesmo para despintar os
piratas. Algo para fazê-los pensar ainda ao longe que as pretensas vítimas
estão indo, quando na verdade estão vindo.
Quanto a brandura de navegar no
Rio Amazonas a noite, que me surpreendera ao sair de Macapá, acabo de queimar
minha língua. Não sabia que no nosso caminho estava a Baía do Vieira. O
Amazonas adquire nomes diversos ao longo de sua passagem pelo Marajó. Aqui é Vieira.
E que gingado tem o Vieira! O barco começou a balançar mais que bandeira em
vendaval. O banzeiro não me amedronta, o único infortúnio é que as redes
começaram a chocar-se uma nas outras. O pior foi a minha, que me jogava contra
um esteio da embarcação. Mas superada a baía, veio a calmaria e às 1h15 do dia
10 de agosto de 2016 o barco motor Fé em Deus de Afuá atracou na cidade
conhecida como Veneza do Marajó, Afuá.
Cidade suspensa
Construída sobre pontes, devido
se tratar de uma área de várzea e igapós, paisagem típica nessa porção da Amazônia,
Afuá tem características peculiares. Podemos dizewr que a cidade flutua sob as águas turvas dos rios. Trata-se de uma ilha. Os rios que cercam a
cidade são Afuá, Cajuuna e Marajozinho, além de vários igarapés que entrecortam
o lugar.
Fundada em 1891, a partir de uma
comunidade católica, hoje o município tem uma população estimada em cerca de 37.398
habitantes (dados Wikipédia 2015) distribuídos entre a sede e a zona rural. Em
que pese que desde os anos 90 o êxodo rural esteja muito presente, levando as
pessoas a ocupar de forma desordenada a cidade, o que acaba por revelar
inúmeros problemas sociais, como a falta de saneamento, emprego e serviços
públicos de saúde.
As moradias são em sua maioria
feitas de madeira, assim como as ruas, ainda que hajam algumas poucas de
alvenaria. Não há presença de nenhum veículo automotor na cidade. O meio
privilegiado de transporte é a bicicleta. Inclusive em frente da cidade há um
grande estacionamento para as magrelas. O carro deles é uma bicicleta adaptada
com quatro rodas, duas pedaleiras e pode transportar cargas e de 4 a 6 pessoas.
Sem dúvidas uma engenhosa criação que garante um charme a mais para a
localidade.
Durante o horário comercial, o
silêncio habitual sede espaço para a rádio cipó, que além de algumas músicas
populares no país inteiro, o forte é a propaganda dos estabelecimentos
comerciais.
Vinho e comida
Em frente a quadra de esportes e
na porção horizontal ao rio Afuá, tem um grande palco. Local dos shows e
apresentações que ocorrem todo mês de julho, durante o Festival do Camarão, que
em 2016 chegou a sua XXXIII edição. Nem precisa dizer, mas o camarão é o
orgulho dos moradores da cidade e um dos carros chefe da culinária local. Claro,
associado ao açaí, que nesses municípios do arquipélago do Marajó e Baixo
Tocantins não são sobremesa. São prato principal. Sempre acompanhado de peixe,
camarão, carne, frango, arroz ou feijão. Não importa! Pra este povo açaí é
comida e ele não pode faltar.
O bom é que por essas bandas
ainda não chegou a maldita extração para importação, o que tem feito o vinho do
fruto ficar extremamente inflacionado, principalmente na Região Metropolitana
de Belém (RMB). Em Afuá o litro custa de 3 a 5 reais. Média. Em Belém, a este
preço, não se compra nem a churamba, que é a lavagem dos caroços após ser
extraído o grosso da polpa do fruto.
Povo das águas
Rua de Afuá. Foto: Mauricio Paiva. |
As pessoas são tipicamente
hospitaleiras, mas não de muita conversa. Gente trabalhadora, marcada pela
labuta diária, de cor que revela a intensa exposição ao sol, ao sofrimento de
viver num país subdesenvolvido no trópico úmido, mas com um brilho nos olhos
que garante que a alegria, no menor descuido, rápido pula para fora e se mostra
nos dentes sorridos e nos apertos de mão acalorados.
A maioria dos que vivem na sede
do município é empregada do intenso centro comercial ou depende de benefícios
sociais ou são servidores públicos. A população da zona rural, que de quando em
quando povoam as manhãs dos dias úteis do município, são os responsáveis pelo
grande vai e vem de pequenas embarcações nos rios que banham a cidade. E tem
embarcação para todo tipo de finalidade. Que transporta gente e cargas, que
transporta fruto do extrativismo vegetal, que transporta peixes e animais em
geral. Inclusive aviste aqui embarcação que transporta combustível de forma
irregular. O que sujeita seus condutores a sérios perigos. Outro dia um barco
explodiu no porto de Abaetetuba. São os perigos pelos quais essa população
batalhadora tem que passar para cumprir aquilo que sentenciou o escritor
português do século XIX: “Navegar é preciso”. Mas a busca de dignidade e de
vida com qualidade também é preciso. As autoridades são os principais
responsáveis por isso. Triste, difícil e sofrida realidade.
As crianças
As crianças são sempre um
capítulo a parte. Em Afuá não poderia ser diferente. Acompanhando os pais, avós
ou responsáveis, elas enfeitam os lugares como borboletas embelezam jardins.
Com sua habitual honestidades, elas gritam, brincam, choram, exigem, doam,
pintam e bordam.
Afuá é uma cidade de crianças.
Caminhei por várias ruas. Floriano Peixoto, João Paulo, Generalíssimo... Elas
lá. De todas as idades. Vestidas, nuas, jogando vôlei, bola, mergulhadas na
mágica da imaginação. Vi um garotinho de mais ou menos um ano e pouco. Ele
estava ao lado de outra um pouquinho mais velha. Carrega um martelo à mão.
Pensei:
– Quem deixou este pequeno com
um martelo na mão?!
Lembrei do dia que meu sobrinho,
o mais velho, deu uma martelada na cabeça do meu irmão. Felizmente nada grave,
a não ser a dor. Mas o que fazer? Errado foi quem deixou ele com o martelo à
mão. Poderia ter caído em seus dedinhos do pés, poderia ter-se machucado feio.
Acabou numa dor de cabeça.
As crianças maiores de Afuá
brincavam de queimada. Acredito que era uma atividade escolar, pois percebi a
presença de uma “tia” que parecia sua educadora física. Eram umas trinta
crianças com idades de 11 a 14 anos. Uma grande e barulhenta queimada. No barco
mesmo haviam várias. Já era tarde da noite e elas transitando por lá. Eu sou do
tipo preocupado. Fiquei pensando na segurança delas. Na vulnerabilidade das
mesmas. E se uma cai n’água? E o pior: ninguém vê? Nem é bom pensar...
Sigamos falando da festa e da
gritaria. A festa chamada queimada. Elas lá entretidas. Aquele corre-corre.
Joga bola pra lá, joga pra cá. Mais gritaria. Diverti-me muito vendo essas
cenas. Já os marmanjos, quatro no total, jogavam vôlei na quadra ao lado.
Fiquei impressionado. Os caras são bons! Mas a molecada chama atenção. Uma bola
desferida por uma garota em um menino. Tocou nele e caiu no chão. A professora
gritou: sai fulano. Contrariado, ele saiu.
___________________________________ Fonte da primeira imagem: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1797010
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