Por Raphael Castro*
jornalismoraphael@gmail.com
Desde o dia
25 de março de 2019, as tropas da Força Nacional estão atuando na Região
Metropolitana de Belém e devem ficar por aqui por pelo menos três meses. Este é
um fato que devemos acompanhar minunciosamente nas próximas semanas. Mas quero
aqui neste texto propor uma reflexão sobre o significado contido na foto da
Secretária de Cultura do Pará, Ursula Vidal, com militares que vão comandar a
operação no estado.
Em 1988, o,
então governador e pai do atual governador do Pará, Jader Barbalho, criava a
Patrulha Tática Metropolitana, PATAM, um braço mais forte da Polícia Militar
pra atuar na segurança pública do estado. Quem viveu aquela época sabe falar
melhor do que ninguém como era o trabalho da PATAM que violentava, matava e até
queimava pobres, trabalhadores, estudantes. O jornalista Carlos Mendes conta,
no blog Ver-o-Fato, sobre sua experiência no extinto Folha do Norte. Com a
machete "FOI PÁ, PÁ TAM", uma matéria daquele jornal denunciava um
grupo de extermínio liderado por policiais da PATAM que haviam cometido uma
chacina, cuja repercussão levaria ao fim da tropa de elite da Polícia Militar
do Barbalho. "Cadáveres apareciam boiando no rio Guamá e Baía de Guajará,
mas os jornais “A Província do Pará”, “Diário do Pará” e “O Liberal” davam os
títulos convencionais, do tipo “corpo é em encontrado no rio”" relata
Mendes.
No dia 11 de
abril de 2018, enquanto o estado do Rio de Janeiro estava sob intervenção
federal militar, a deputada federal e mãe do atual governador do Pará, Elcione
Barbalho (MDB) e o deputado federal e pai do atual Secretário de Justiça e
Direitos Humanos do Pará, Éder Mauro (PSD), solicitaram formalmente ao então
presidente Michel Temer intervenção federal na segurança pública do estado do
Pará. No dia seguinte, o Diário do Pará, jornal que pertence à família do
governador Helder Barbalho, estampava em sua capa a consigna “INTERVENÇÃO
FEDERAL JÁ!”.
No dia 2 de
janeiro de 2019, Helder Barbalho, em seu primeiro ato como governador, solicita
ao Ministro Sérgio Moro apoio das tropas da Força Nacional no Pará. Acompanhado
a isso, Helder também anunciou o aumento em 50% de viaturas da PM e quase 2 mil
policiais a mais. O governador chegou ainda a cogitar a adoção do modelo de
Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) que foi implantando no Rio de Janeiro. Tudo isso para agradar os setores do governo
que mais estão preocupados com a “segurança” pública, como o deputado Éder
Mauro e seu filho Hugo Sarmanho Barra, presidente do PSL no Pará e Secretário
de Justiça e Direitos Humanos.
No dia 25 de
março de 2019, mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro orientou a
comemoração do golpe militar de 1964, a Secretária de Cultura do Estado, Ursula
Vidal, postou uma foto com as comandantes da operação da Força Nacional no
Pará, saudando a chegada da tropa federal militar enviada pelo ministro Sérgio
Moro, do Governo Bolsonaro.
Por que questionar a Força Nacional no Pará?
No mês passado, eu estava indo
de moto-taxi acompanhar a apuração do desfile das escolas de samba de Belém,
quando, no cruzamento da José Bonifácio com a Mundurucus, três policiais
militares nos abordaram com armas em punho apontadas pra mim e para o
mototaxista. Na teoria, aqueles policiais estavam ali só pra vistoriar e
garantir a paz. Vale dizer que a abordagem que eu sofri naquela noite não é tão
comum comigo, mas é corriqueira, e é muito mais violenta, com jovens da minha
idade que têm a pele mais escura que a minha e estão excluídos dos ambientes
políticos, acadêmicos e profissionais nos quais eu estou.
Em setembro do ano passado, com mais de 1.300 mandados de busca de apreensão, a operação Cristo Redentor
invadiu as casas das mais de 1.300 famílias da ocupação urbana Pouso do
Aracanga, em Ananindeua. É como se todas as famílias daquele lugar tivessem
associação com o tráfico. Uma mega operação com Batalhão
de Polícia de Choque, Batalhão de Polícia Tática, Regime de Polícia Montada,
Companhia Independente de Operações Especiais e Companhia Independente de
Policiamento com Cães e Grupamento de Pronto Emprego (GPE) tocou o terror
desde a madrugada agredindo homens, mulheres, jovens, crianças e idosos. Poucos
dias depois, eu fui àquela ocupação e era impressionante o número de pessoas
com hematomas e com relatos macabros da ação da polícia.
É sobre esse
modelo de segurança que estamos falando. Um modelo em que se seleciona um
determinado perfil, baseado em estereótipos, que é considerado de potencial
criminoso e, portanto, inimigo a ser aniquilado. É a polícia que primeiro
atira, depois pergunta. E com todo esse enorme aparato de repressão militar que
o estado do Pará já tem, por que recorrer a mais uma força e dessa vez federal?
Se o estado não consegue resolver o problema com seu
efetivo de polícias e guardas municipais, por que uma irrisória tropa de 200
militares iria resolver?
A Força
Nacional foi convocada pra cá sem que o governo tenha dado as devidas
explicações. Com base em que o Governo do Estado garante que isso vai ter um
efeito positivo? Os especialistas em segurança pública, que se dedicam a
estudar essa problemática, pensam o que a respeito? O que garante ao governo
que essa medida não vai aumentar o ciclo < mata policial - mata favelados em série > que vimos em escala assustadora por aqui no ano passado?
O relatório
do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017, ao apontar que, em 2015, o
investimento de R$ 160 milhões na Força Nacional correspondeu a 43% do
orçamento total do Fundo Nacional de Segurança Pública, questiona "qual a
real efetividade dessa mobilização de recursos? Há alternativas mais efetivas e
duradouras para o uso desses R$ 162 milhões?". Mesmo sem responder a essas
questões, de lá pra cá, os governos Dilma, Temer e agora Bolsonaro seguem
apostando na FN como principal estratégia de segurança pública como política
nacional. E o atual Governo Federal, tão cedo já tão desgastado, precisa
performar soluções para problemáticas latentes, como a segurança pública.
A operação
da Força Nacional por aqui pretende implantar “territórios de pacificação” em
áreas mais críticas da Região Metropolitana de Belém, nesta primeira
experiência. Que pacificação é essa? A secretária de cultura do Pará, quando
ainda estava no PSOL, participou do lançamento em Belém do livro “UPP a redução
da favela a três letras” de Marielle Franco. Que pacificação é essa que vem
inspirada no modelo de “pacificação” que Marielle tanto denunciou?
“Negro
também é gente?” pergunta Bruna Silva, mãe de Marcus Vinicius, em entrevista à
reportagem “A mãe de um sem direito à vida” do Projeto Colabora. A reportagem,
que faz parte de uma série sobre brasileiros sem direitos básicos
constitucionais, nos dá mais um panorama do modelo de segurança pública
militarizado que ceifou a vida de um garoto que trajava uniforme escolar no Rio
de Janeiro:
“Na
cerimônia em que celebrou o encerramento da intervenção [federal], em 27 de
dezembro do ano passado, o general interventor Walter Souza Braga Netto e o
secretário de Segurança Pública fluminense, general Richard Fernandez Nunes,
receberam uma medalha cada um e se cumprimentaram pelo trabalho bem feito.
Braga Netto disse que a intervenção “atingiu todos os objetivos propostos” e se
gabou: “cumprimos a missão”. Tanta comemoração dizia respeito à diminuição nas
ocorrências de roubo de carga, que, com a intervenção, diminuíram 14% em
relação ao mesmo período do ano anterior, conforme o Observatório da
Intervenção, coordenado pela faculdade Cândido Mendes. No que dizia respeito ao
direito à vida, não havia tanto para celebrar: um recuo de 5,5% nos homicídios,
acompanhado de um aumento de 40% no número de mortos pela polícia.”
Se não temos
evidências da eficácia desse tipo de operação e ainda temos péssimos exemplos
dessa política de polícia “pacificadora”, se somos um país que ainda não
acertou as as contas com o passado sangrento da ditadura militar e já elegeu
“democraticamente” um presidente que venera o torturador Ustra, se estamos em
um estado que ainda não respondeu pelas chacinas executadas por policiais
militares de grupos de extermínio, por quê receber a Força Nacional com tanto
entusiasmo?
E o que a pasta de cultura do goveno tem a ver
com isso?
Abdias do
Nascimento, no clássico “O Genocídio do Negro Brasileiro”, fala de como a
cultura foi usada estratégicamente para executar o plano de genocídio das
populações indígenas e descendentes de africanos. Enquanto se perseguia as
rodas de samba, de capoeira e os cultos de Candomblé, também se sustentava a
tese de “assimilação de culturas”, “mistura de culturas”. É daí que sai a
máxima de “democracia racial”.
O mito da
democracia racial persiste, assim como o genocídio do povo preto, que inclusive
avança. É com esse pano de fundo “democrático” que tentam nos empurrar goela
abaixo a ideia de que a militarização da segurança pública vai nos trazer a
paz. A paz que a Secretária de Cultura diz entusiasmada que a Força Nacional
vai implantar no Pará.
A paz?
“A paz é muito falsa. A paz é uma senhora. Que nunca olhou na
minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. A paz é muito branca.
A paz é pálida. A paz precisa de sangue.”
(Da Paz, Marcelino Freire)
A
cultura pode e deve ser elemento de transformação e resistência, mas também
pode ser usada para legitimar a violência e a carência de democracia. A cultura é um campo de disputa, onde quem exerce hegemonia é quem tem mais poder.
Por
que a Secretária de Cultura faz questão de participar e divulgar um evento que
não está ligado à sua pasta no governo? Isso diz muito sobre o papel
estratégico que essa secretaria tem no Governo Helder. Enquanto o governo
aplica com mão de ferro sua política de segurança pública militarizada, ele
também está respaldado para dizer que está paralelamente aplicando políticas de
cultura que amenizariam a violência inflamada pela operação.
No
Instagram da secretária, fiz o seguinte comentário:
As tropas da Força Nacional chegam ao Pará seguindo uma
agenda militarizada e genocida de segurança pública. Seguindo a mesma lógica de
"pacificação"que sumiu com o Amarildo e matou o Marcus Vinicius.
Política de um governo que condecora PM que mata em serviço, num país em que
76% das pessoas mortas em intervenções policiais são negras. É também a polícia
que mais morre, tu sabes, e 56% desses mortos são negros,embora se tente
florear representatividade nessa militarização. Do alto do teu prédio no centro
da cidade, Ursula, e de dentro do condomínio de luxo do governador, pode
parecer que essa militarização "pacificadora" tráz "políticas
públicas de educação, cultura e geração de renda" pra ficar tudo bem. Aqui
em baixo, a realidade é bem diferente, viu. Essa "paz" encomendada
direto da força militar federal, neste momento do Brasil, que tu estás
saudando, custa muito caro. Custa direitos e até vidas de gente preta, pobre,
favelada e trabalhadora. A operação tá só começando, bora ver como serão os
próximos dias. Será que a sra secretária de cultura, o secretário de segurança
pública e o governador vão dormir tranquilos nas próximas noites? Será que as
mães de meninos pretos das áreas da RMB que vão ser "territórios de
pacificação" vão dormir tranquilas? Cuidado com as mãos que tu andas
apertando, várias delas estão sujas de sangue de gente preta e pobre.
Eis
que Ursula responde me convidando pra um concerto da Orquestra Sinfônica do
Teatro da Paz.
É um
fato que ao assumir a secretaria de cultura, Ursula passa a ideia de renovação
na gestão cultural do estado, que estava nas mãos do mesmo secretário há mais
de 20 anos. Mas a questão é: enquanto se promovem bate-papo com a Secult,
editais de ocupação de teatros, espetáculos populares, etc., quantas pessoas
estão tendo direitos violados nas abordagens policiais sem que quase ninguém
reflita sobre isso? Essa política “progressista” de cultura está chegando onde
além dos grandes teatros? Porque as manifestações culturais do povo preto, os
batuques, as batalhas de hip hop, continuam sendo criminalizados. Os jovens pixadores nas periferias continuam sendo violentados pela PM porque não se enquadram como "artistas grafiteiros" dignos de estamparem suas obras nos museus do estado. E ainda: em
quem chega as políticas da Secult e em quem chega a violência policial? Quem
são os paraenses que frequentam eventos como o que a secretária de cultura me
convidou pra desviar o meu questionamento? Qual é, verdadeiramente, a diferença entre
as gestões de políticas culturais nos governos tucanos e agora no Governo
Barbalho? Não se trata de desmerecer a real importância da política cultural,
mas sim de estar alerta para o quanto isso pode estar nos dividindo, nos
iludindo, nos fragilizando e privilegiando alguns de nós.
O
estado do Pará continua afundado numa crise social com altas taxas de homicídio
que castiga a população mais pobre, com a saúde pública em frangalhos, com a
educação abandonada, escolas públicas literalmente caindo aos pedaços, bioma
amazônico paraense sendo destruído pelas multinacionais, populações
tradicionais sendo castigadas por contaminação e pelo empobrecimento,
lideranças de movimentos sociais sendo assassinadas. Como, no meio de todo esse
caos, a solução que o governador Helder Barbalho apresenta é ensaiar a
implantação de um modelo de segurança que já deu muito errado em outros
lugares? E como a justificativa da Secretaria de Cultura, para defender a
medida do governo, é apresentar sua agenda de eventos culturais?
Para
acreditar que não tem problema mais militares nas periferias porque tem mais programação
cultural promovida pelo governo, é preciso estar em um local muito privilegiado
da sociedade. É não ter a menor noção de como é sentir na pele a ação da força
militar nas periferias. Uma amiga (negra) me contava, ontem mesmo, que o irmão
dela (negro), no bairro da Pedreira, foi revistado por homens da Força Nacional
porque teria “olhado feio” para uma militar que estava na viatura. Se o gênero
une Ursula àquelas mulheres da foto, a raça e a classe criam um enorme abismo
entre a secretária e tantas policiais militares que morrem em serviço e também
entre a secretária e as centenas de milhares de mães que enterram seus filhos assassinados
pela PM; e as centenas de milhares de homens negros que morrem por conta dessa
lógica de “segurança” pública. Esse abismo confere privilégio pra poder posar
sorridente ao lado de duas policiais armadas pra guerra.
Ursula
Vidal, que já foi de esquerda e empolgou boa parte da militância do PSOL –
inclusive a mim – com sua candidatura ao Senado em 2018, agora usa o prestígio
que conseguiu entre ativistas para dar um ar democrático e progressista a um
governo comprometido com o genocídio do povo negro e pobre.
Quem
acredita que a paz vem pelas mãos dos militares são os Bolsonaros, Witzel,
Moro, Éder Mauro, Jader e Helder Barbalho. Quem comanda a pasta de Justiça e
Direitos Humanos no Pará, que poderia assegurar a não violência da força
policial militar, é do partido de Bolsonaro, partido de quem homenageia e
emprega milicianos em seus gabinetes, do partido daquela figura desprezível que
quebrou a placa de Marielle Franco. É no meio dessa gente que está,
estrategicamente, a simpática secretária de cultura. Política de cultura não é
benevolência, é obrigação do Estado! Nem pode servir pra “contrabalancear” a
violência do braço militar desse Estado dito “democrático” e “de direito”. Não
podemos nos enganar.
Do
lado de cá, seguiremos lutando em defesa dos direitos humanos, denunciando o
genocídio da juventude negra nas periferias e pautando a necessidade de uma
verdadeira segurança pública que nos proteja e não nos ameace. E seguiremos
levantando a bandeira da cultura, a cultura que nos liberta e não que nos
anestesia. Vamos bater o pé sim! Não aceitaremos que a cultura sirva para
legitimar uma agenda de morte.
*Raphael Castro é jornalista, midiativista e mestrando em Comunicação, Cultura e Amazônia.