por Joice Souza
Você já deve ter ouvido a história de como surgiu o 8 de março. A partir da década de 60, em meio à guerra fria, circulou e se consolidou a versão de que o dia internacional das mulheres trabalhadoras foi instaurado em função da morte de 129 operárias norte-americanas durante uma greve em 1857, em um incêndio provocado por seus patrões.
No entanto essa história nunca ocorreu. Ela é fruto de uma confusão ou talvez de uma das maiores fanfics do stalinismo mundial. Esse mito nos levou a relembrar o 8 de março como o dia em que operárias foram queimadas vivas, a greve derrotada e a burguesia saia vitoriosa esmagando, com a força física, os métodos da classe. Mas essa história é um mito! Há publicações fartas que demonstram que essa narrativa é fruto de um conjunto de informações desencontradas e confusão de datas.
As operárias tomavam as ruas no inicio do século XX
Claro o mito da greve de 1857 possui vários elementos verdadeiros. De fato, em 1910 a comunista Clara Zetkin propôs ao congresso da Segunda Internacional Comunista a fixação do dia internacional de lutas das mulheres trabalhadoras a ser comemorado no dia 29 de março. O “womans day" era realizado nos EUA com grandes marchas organizadas por mulheres desde o inicio do século XX sempre entre fins de fevereiro e início de março, tendo como pauta o direito ao voto, melhores salários e condições de trabalho, jornada de trabalho, etc.
O “DIA DA Mulher” ganhava força no inicio do século à medida que ganhava força a participação das trabalhadoras no movimento operário. Segundo Aleksandra Kollontai, o número de trabalhadoras sindicalizadas saltou de pequenos grupos dispersos em fins do século XIX para formar “um poderoso exército de mais de um milhão de mulheres socialistas" em 1913.
Não fomos incendiadas. Incendiamos o mundo!
Também é verdade que o fato que consolidou em 1922 o oito de março como Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras foi uma importante marcha de operárias em greve. Porém, essa greve não foi derrotada por um incêndio. Teve início em 8 de março de 1917 (23 de fevereiro no calendário juliano) o poderoso levante de trabalhadoras (e trabalhadores) de Petrogrado iniciado por operárias tecelãs, que atropelaram a orientação da direção do partido bolchevique de não realizar greve, num levante espontâneo, que segundo Trotsky, deu o pontapé à primeira etapa da Revolução Russa: a chamada revolução de fevereiro.
Era o dia internacional das mulheres (que na época não tinha data fixa). A socialdemocracia russa preparava panfletos. A Rússia explodia em greves num novo ascenso operário que desde 1915 rompia com o período de refluxo e derrotas vividos durante cinco anos. Mesmo assim as direções do movimento operário haviam desaconselhado a realização de greve por acreditar que “não eram momentos propícios à hostilidade" e agitavam a necessidade de uma “ação revolucionária”, porém sem data determinada. Mas quando amanheceu o dia 23 de fevereiro, as fábricas têxteis do bairro de Vyborg não funcionaram.
Contrariando a orientação de suas direções, operárias tecelãs entraram em greve e enviaram comissões a outras categorias. As direções, de início a contragosto, acompanharam a marcha. Leon Trotsky nos fala sobre esse episódio nos primeiros capítulos de seu livro História da Revolução Russa escrito em 1930:
“De fato, estabeleceu-se que a Revolução de Fevereiro foi desencadeada por elementos da base que ultrapassaram a posição das suas próprias organizações e que a iniciativa foi espontaneamente tomada por um contingente do proletariado explorado e oprimido mais que todos os outros – as trabalhadoras do têxtil, cujo número, deveria-se pensar, devia-se contar muitas mulheres soldados. (...) O número de grevistas, mulheres e homens foi, nesse dia, cerca de 90 000. (...) Em diversos bairros apareceram bandeiras vermelhas cujas inscrições atestavam que os trabalhadores exigiam pão, mas não queria mais autocracia nem guerra. O 'Dia das Mulheres' tinha conseguido. Ele estava cheio de entusiasmo e não tinha causado vítimas." (TROTSKY, 1930)
Aquele 23 de fevereiro não terminaria ali. Nos dias seguintes mais operários/as se juntavam às manifestações, as forças policiais se dividiam entre a repressão e a simpatia ao movimento e as palavras de ordem por pão, paz e terra ecoavam pelas ruas de Petrogrado.
Importante destacar que o levante de Petrogrado não foi um levante só de mulheres desprezado pelos homens, como defendem setores do pós-modernismo sempre que querem problematizar um suposto papel secundário das mulheres na revolução. A greve do dia 23 foi um poderoso dia de levante de trabalhadoras e trabalhadores impulsionado por um de seus setores mais precarizados, as tecelãs, contra o absolutismo do Czar e que atropelou e arrastou consigo uma direção que inicialmente estava vacilante. No texto mulheres militantes nos dias da Revolução de outubro, Aleksandra Kollontai fala sobre o papel das mulheres. Dele, destaco o seguinte trecho:
As mulheres que participaram na Grande Revolução de Outubro – quem eram elas? Indivíduos isolados? Não, havia multidões delas; dezenas, centenas e milhares de heroínas anônimas que, marchando lado a lado com os operários e camponeses sob a Bandeira Vermelha e a palavra-de-ordem dos Sovietes, passou por cima das ruínas do czarismo rumo a um novo futuro. (...) No ano de 1917, o grande oceano de humanidade se levanta e se agita, e a maior parte deste oceano feito de mulheres… Algum dia a história escreverá sobre as proezas dessas heroínas anônimas da revolução, que morreram na Guerra, foram mortas pelos Brancos e amargaram incontáveis privações nos primeiros anos seguintes a revolução, mas que continuou a carregar nas costas o Estandarte Vermelho do Poder Soviético e do comunismo. (Kollontai, 1927)
Essas trabalhadoras conquistaram o que nenhuma democracia burguesa havia dado até então. O Estado Revolucionário garantiu igualdade política e jurídica a mulheres e homens, o direito ao divórcio e ao aborto, a construção de creches, restaurantes e lavanderias públicas e consolidou em 1922 o dia 8 de março como Dia Internacional das Mulheres em alusão a greve das tecelãs de Petrogrado.
A Revolução Russa foi um divisor de águas nas lutas feministas do início do século XX, pois de um lado as trabalhadoras em todo o mundo abraçavam o socialismo e reivindicavam para si conquistas das trabalhadoras soviéticas; por outro lado, as mulheres burguesas se lançavam em defesa de sua classe, pois lutavam por questões pontuais: igualdade de gênero, desde que isso não significasse perder seus privilégios. Muitas foram às associações, clubes e grupos de mulheres (em geral da alta-sociedade) contra o comunismo, fundados naquele período.
Infelizmente, o triunfo do stalinismo e a burocratização do estado soviético, a partir de 1923, interrompeu esse processo de (auto) libertação das mulheres antes que ele se completasse, revertendo diversas conquistas das mulheres e jogando o 8 de março no esquecimento por décadas. Somente nos anos de 1960 é que o Dia Internacional da Mulher veio a ser retomado: tanto pelo stalinismo mundial, que o resgatou já com o mito da greve de 185, como pela burguesia em 1975, quando a ONU reconheceu oficialmente a data buscando dar respostas ao novo ascenso da luta das mulheres que se gestava naquele período.
Seguir o exemplo das tecelãs de Petrogrado! Viva a luta das mulheres! Viva a Revolução Russa!
100 anos após a Revolução, o capitalismo mostra sua face patriarcal na Rússia: em janeiro deste ano foi aprovada a lei que descriminaliza a violência doméstica e em todo o mundo a crise capitalista atinge com mais força as mulheres superexploradas e oprimidas. Poderosos levantes de mulheres explodem no mundo contra o patriarcado e relembrar a história do 8 de março, dia em que iremos mais uma vez às ruas, é muito importante para demonstrar que essa data não é sobre a burguesia e seus métodos assassinos e cruéis, nem sobre repressão. É sobre o poder das mulheres trabalhadoras e seus métodos. O 8 de março é um dia para ir à luta e incendiar o mundo como o fizeram as tecelãs em 1917.
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Joice Souza é jornalista e militante da tendência sindical Combate - Classista e pela Base.
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Joice Souza é jornalista e militante da tendência sindical Combate - Classista e pela Base.
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